Não sei quem me ensinou a temperar o aço. Suspeito ter sido o Veio Cristóvão porque vovô, apesar de ser um excelente ferreiro, tinha pouca paciência para me ensinar. Falava, explicava, mas deixar fazer quando ele trabalhava, era muito difícil. Estava sempre com uma pressa daquelas.
O aço é uma liga de ferro e carbono (vai aí mais uma exibição de cultura inútil). Ele frio é muito duro, logo, difícil de ser moldado. Quando se quer fazer alguma coisa com um pedaço dele, obrigatoriamente tem-se de aquecê-lo até o rubro para perder a têmpera. Então a gente faz daquela peça que se deseja e depois há de ser novamente temperada.
Se quiséssemos fazer uma faca, por exemplo. Naquela época somente se tinha as molas partidas dos fordecos como fonte deste material. Aquecidas na forja, marretadas, e quando a lâmina estava como se desejava, dava-se forma ao cabo, faziam-se furos, se houvesse alguma necessidade. Amolávamos o corte e aí sim, poderíamos fazer aquele material voltar a sua estrutura natural, caso contrário o fio do corte ficaria sem resistência, a faca rapidamente o perderia, tornando-se cega. Resumindo: serviço porco.
E por que não fazer tudo isto direto do aço? Devido a sua dureza. Ninguém ia conseguir afinar a lâmina para apanhar corte ou furar com máquinas rudimentares da época para prender um bonito cabo de madeira, chifre ou osso cravejado com pinos de latão dourado. Você tinha de saber temperar.
Depois da peça pronta com a forma definitiva, tudo nos “trinques”, tínhamos de limar muito bem toda a lâmina de modo que não ficasse nenhum vestígio de ferrugem. Isto feito se levava o que se pretendia temperar ao fogo da forja para aquecer. Antes já preparávamos um balde ou qualquer outro vasilhame com água fria.
Quando estava no ponto retirávamos com a tenaz e, no caso de uma faca, toda a região do corte, mais ou menos um centímetro ou dois no sentido horizontal da peça, introduzíamos na água fria. O ferro dentro da água esfriava, tornando-se branco e assim deixávamos até que toda a parte fora d’água também perdesse o vermelhão do aquecimento.
Quando isto acontecia, retirávamos a peça e ficávamos de olho no espetáculo iniciado. Em forma de ondas, faixas coloridas iam avançando em direção ao corte. Primeiro uma de coloração amarela forte – amarelo-ouro – seguindo-se outra de amarelo-claro e depois as nuanças de azul, do mais forte ao azul-celeste.
Estas cores determinavam a dureza ideal para cada ferramenta, para qual tipo de trabalho seria destinado e melhor para seu desempenho. No caso de uma faca, poderia ser amarelo-claro ou azul-escuro, pois não necessitávamos de um fio tão duro e seria mais maneira na ocasião de ser afiada.
Se você fizesse um formão para trabalhar em madeira dura, a têmpera ideal deveria ser a amarelo-ouro. O corte aguentaria mais tempo para se perder ou amassar o fio e não seria muito difícil amolar. Se você o fizesse na cor prata, esfriar de uma vez só o aço quente, a ferramenta ficaria muito dura e com a tendência a quebrar e soltar perigosos fragmentos de metal e quando necessitasse afiar, haja lima e paciência!
Mas se precisar de uma talhadeira, corta-frio, seja, ferramenta que vai ser usada para trabalhar outro metal, a têmpera tem de ser a azul, porque não solta cavacos, não quebra à toa e satisfaz plenamente às necessidades quanto à durabilidade do corte.
Era assim. Véio Cristóvão tinha quase todas suas ferramentas fabricadas por ele mesmo: plainas, cepos, guilhermes, formões, enfim, o que ele podia fazer, fazia. Todas de madeira e os ferros bolados, feitos e temperados por aquele negro sensacional. E ele era paciente, gostava de ensinar, de fazer para mim coisas que eu ainda não dava conta e sempre aos domingos, seu único dia de folga.
Naquele tempo eu olhava para aquilo como mais um ensinamento, mais um aprendizado, mais uma curiosidade satisfeita. Só isso. Hoje eu percebo a poesia que existia num simples trabalho; numa necessidade para o dia a dia de qualquer um lá da roça. Duvido que alguém possa imaginar como é linda, poética e imensurável a beleza de estar ali observando aquela sucessão de cores que eu não tinha visto antes e nunca mais vou ver em qualquer outro lugar. Era mais uma nova emoção para se fixar lá nas entranhas do meu cérebro e que me vem à tona, de vez em quando, acompanhada da voz rouca e compassada do meu mestre Cristóvão:
He!he!eh. Ficô uma beleza! Eu num ia sabê fazê mior!
E o meu desalmado e frio corretor de texto está grifando de vermelho tudo o que ele me disse. Vai pras picas! O Véio Cristóvão era um sábio, um baita ser humano que, às vezes, até se menosprezava, pregando uma mentirinha como esta para que eu fosse mais feliz. Só por que nasceu negro e pobre? E daí?