BRIGUEI COM A ALICE
Contos  |  Terça-feira, 30 Agosto, 2022 8:08  |  Visitantes e Leitores: 1581  |  A+ | a-
Dr. Dirceu Badini
 
Hoje e antes algumas vezes briguei com a minha neta Alice. Imaginem duas criaturas brigando: um com mais de setenta e outra com menos de três anos! Como eu pude brigar com a minha netinha querida e melhor amiguinha que jamais tive! Não devia? Devia? Depende? Sei não... Estou deveras arrependido. Chorei. Voltei à sua cama e levei novamente o objeto motivo da briga. Briga feia sim: ela me chutou, esperneou... Sabe? Intimamente achei graça, até quando ela me disse:
 – Vou quebrar isso!
Vou contar-lhes o motivo do nosso entrevero.
Apesar de menos de três anos tem uma inteligência que me assusta. Veio equipada com os seus genes mais do que distintos e já desempenhando as suas divinas tarefas, ao meu julgamento, precocemente.
Por exemplo: gosta demais de perfumes, batons e tudo mais que uma mulher gostaria de ter. Pinta os lábios; passa brush, lambuzam-se as pálpebras com cotonetes embebidos em tintas das mais variadas cores, passa alguma tinta nos cílios, usa sempre desodorante e produtos para amaciar e hidratar a pele (?). Roupas distintas. Muito brilho. Não adianta imposição. Usa aquelas que mais se combinam e deseja usar. Acerta sempre, segundo Isa. Vocês já viram isto numa criaturinha de menos de três anos? Claro que já! Eu que sou muito exagerado ou deslumbrado.
Ah! Adora ir ao coleginho. Está frequentado o Crescer, aqui mesmo nas Braunes. Não tenho dúvidas que é a extensão da minha e da casa dos seus pais. Adora ir lá estar com seus coleguinhas, como o Artur, Tia Glenda, Tia Juliana, Tauã, Pedro e tantos outros.
Mas nem tudo é maravilha quando se trata da Alice. Há dias que está com um capetinha incorporado. Hoje foi um desses dias. Isa chegou de carro com ela. Como estava com muitas saudades, fui até a garagem pegá-la no colo e andar um pouco com aquela criaturinha para quem vovô dá, sorrindo, a sua vida. Abri a porta. Vi pela cara que fui muito inconveniente. Não era o dia apropriado. Não vou discutir com ela e nem querer saber o porquê de tamanha rabugice. Ela deve ter os seus motivos para assim agir. Simplesmente fechei a porta e saí dali.
Voltei ao que estava fazendo no meu escritório. Dali a pouco ela chegou com um frasco de perfume e já, esquentada, pedindo para que eu o abrisse. Acontece que aquele frasco não é daqueles que você arrolha ou não; é do tipo que você aperta uma bombinha e ele asperge o perfume. Como ela não tem ainda força para fazê-lo funcionar, queria por que queria que eu desatarraxasse a rolha para ela o usar. Culpa da Isa. Não deveria dar aquilo para ela. Também a minha querida Isa não poderia imaginar o final do filme, não é?
Tentei explicar que aquilo não funcionava como ela queria ou imaginasse. Ai o bicho pegou. Esperneou. Tentei colocar a minha autoridade. Não surtiu o efeito que eu esperava. Então parti para a briga franca: eu coloquei o frasco na minha mesa. Sabe o que a coisinha enfurecida quis fazer?
 – Vou jogar no chão e quebrar!
Pera aí! Assim não! Imagina se com três já tem esta determinação e quando tiver quinze ou vinte? (pensando bem, quando ela tiver aquela idade eu não mais estarei aqui, mas, acho, tenho obrigação de ajudar a minha filha que teoricamente estará com ela e não me culpar por não a ter educado nos moldes que a vida moderna nos ordena. Afinal, nós não somos mais donos de nós mesmos).
Bronqueei! Disse-lhe que nem tudo que ela queria, poderia ser feito e derramei a sabedoria que acho que tenho para educá-la. Estou certo disto? Sinceramente tenho dúvidas. Soltei a cachorrada. Saiu soltando fogo pelas narinas. Do meu escritório ouvia o seu chorinho. Ninguém foi paparicá-la. Mas eu estava ansioso por demais. Pedir desculpas! Como ela às vezes faz quando acha que eu estava certo nas nossas muitas mutretas.
Aguentei. Estava aqui no micro, mas ouvindo o seu chorinho sentido. Eu não estava aqui; estava lá. Não devo e nem posso ceder. Pois dali a pouco ela veio ao meu encontro. Beicinhos de choro (sabem como? Arriadinhos, carinha de sofrimento?), olhos vermelhos lotados de lágrimas. Assim me olhou por alguns segundos. Não sei como pude suportar tamanha injustiça que, no meu julgamento, eu teria feito com a pequenina. Um velhote desse brigando e mantendo a sua força moral e intelectual ou mesmo física pra cima de uma criaturinha indefesa que somente sabe exprimir os seus sentimentos por expressões faciais? Nunca poderia medir forças comigo ou qualquer outro adulto. Na verdade senti-me um grande covarde, um bestalhão idiota e longe da minha qualidade de humano desenvolvido. Que vergonha! Que vexame! Pombas! Quebrar aquela rolha e dar para ela! Acho que não devia, ainda mais sob pressão.
Querem saber mais? Não suportei. Peguei o frasco do perfume e fui até ao meu quarto onde ela estava deitada vendo o seu programa favorito de TV: Discovery Kids. Quando me aproximei ainda estava com os olhinhos avermelhados e úmidos. Lágrimas pendentes nos cantos das pálpebras.
Aproximei-me dela segurando tudo que os meus parcos sentimentos me permitiam para não chorar também. Levei o frasco de perfume que ela tanto queria. Ofereci-o. Ela o olhou e me apontou sobre a mesinha de cabeceira:
 – Vovó me deu esse, vovô!
Derreteu-me de vez. Avalanche moral. Disse-lhe que aquele tinha mais perfume do que o outro, muito melhor. Beijei-a muitas, muitas e muitas vezes. Quanto arrependimento. Estava estorvando a sua apreciação do lazy town. Não liguei para isto. Beijei-a não sei quantas vezes até que uma teimosa lágrima rolou pela minha face. Enxuguei-a com a manga do moletom e saí depressa. Não queria que ela me visse chorando. Covardia minha, sei! Completei toda a minha emoção quando cheguei ao meu cantinho. Soltei de vez. Deixei extravasar. Será que ainda vou ter outras brigas como esta? Ah! Deus! Eu não queria jamais. Não sabe como é doída! Livre-me disso, tá! Por favor!

Segunda-feira, quatro de agosto de 2008
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