Um trabalhador rural, braçal ou como se considerava: um lavrador. Muito bom se restrito aos parâmetros configurados para o seu cérebro. Tenho a impressão de que sei lá quem tenha economizado muito quando lhe forneceu os miolos. Tinha o necessário para desempenhar bem todos os itens vitais e alguma coisinha mais. Muito limitado.
Fazia praticamente tudo que um lavrador devia executar: roçava, capinava, plantava; enfim, manejava a contento aquelas ferramentas e aproveitava as minguadas oportunidades que a vida podia oferecer-lhe. Fazia quase de tudo na fazenda, menos algumas tarefas como, por exemplo, lidar com animais putrefatos, (enterrar um animal morto) ou como ajudante para desencravar partos atravancados de algumas vacas ou porcas:
– Meu estombo imbruia tudinho e vem aquela ansa de gumitá! Hum! Hum! E sempre que se lembrava disso largava, onde estivesse, uma baita cusparada.
Sabendo lidar com ele, tudo bem. Se lhe pedisse para roçar o bananal, cuidado! Seria melhor detalhar a orientação e repetir tudo no dia seguinte. Lembrar-lhe bem para roçar os matos entre as touceiras, limpar as folhas secas ou velhas das moitas, ajuntar entre as carreiras. Se você economizasse palavras e dissesse para roçar o bananal teria o desprazer de ver todas as bananeiras cortadas e toda a outra vegetação num bem-bom. Quase certo.
Era essa a sua maior e melhor qualificação: esquecimento. Meu Deus! Não havia um dia em que não largasse para trás uma ferramenta, a garrafinha onde levava o café fraco de dar dó, uma enxada, foice… Raramente ele voltava da sua labuta diária sem que deixasse alguma coisa por lá. Ninguém mais achava estranho e nem graça disso. Rotina.
Não era dado às bebidas. Por vezes um traçadinho de “vinho branco” com jurubeba, um refresco de groselha ou uma dose de canelinha. Era amarrado num cigarro de palha sempre aceso e seguro entre os lábios ou mordido pelos dentes escassos. Não usava fósforos, mas tinha sempre consigo um isqueiro amarelo e parecido com uma bala de revólver agigantada. Abastecia-o com gasolina e de vez em quando pedia ao vovô para encher aquele vidrinho de “Capivarol”.
Trabalhava de sol a sol e de segunda a sábado, mas o domingo era todo dele. Ficava desde cedo na venda nada fazendo e falando menos ainda. Passava todo o dia sem muita conversa e raras vezes comendo um pão com azeite doce, com salame ou ainda rosca com açúcar. Quando se destinava a ir para casa, tinha de cumprimentar um a um dos presentes. Apresentava a mão direita aberta, tocava a do outro sem aperto, ao mesmo tempo em que levantava levemente o chapéu de palha da cabeça com a esquerda. Tivesse ali quantas pessoas fossem, aquele gesto assim repetido.
Mas havia uma coisa de que ele não abria mão e ninguém precisava ensiná-lo: plantar arroz. O brejo que ainda existe na fazenda era reservado para o Pirulito soltar toda a sua sapiência e esperteza. Roçava as açucenas e outras ervas maiores; ajuntava tudo aquilo e drenava os lugares mais encharcados. De vez em quando uma sanguessuga gorda aparecia grudada às suas pernas e ele nunca esqueceu – incrível – de levar no bolso um limão galego: era só espremer sobre a “mardita” que ela soltava logo, logo.
Enquanto os matos roçados secavam para ser queimados, preparava a sementeira. Naquela época ninguém plantava arroz de sequeiro, somente o arroz-do-brejo. Não se podiam plantar os caroços e sim mudas já crescidinhas. Os caroços não brotariam dentro daquela lama. Então se faziam os canteiros em terra firme e os cobriam com uma latada com folhas de bananeiras. Todos os dias ele tinha de regar pela manhã, à tarde e ainda dar duro nos goderos e rolinhas que adoravam arrancar as plantinhas ainda tenras.
Depois de revirar toda aquela terra preta e encharcada, destocando os rizomas das açucenas, plantava, montinho por montinho, aquelas mudinhas verdes e viçosas. Mais tarde teria de fazer uma ou duas capinas e finalmente a colheita. Tinha o capricho de separar do arroz agulhinha ou japonês, na época do corte dos cachos, o arroz Moçambique que não era bom, escuro e duro pra chuchu e ninguém gostava de comprar. Era esse o primeiro consumido pela família depois de pilado.
Então vendia parte do melhor e com o dinheiro apurado ia à venda para as compras da colheita. Nada de exagero. Tecido para uma calça, uma camisa, roupas para as crianças; sacos vazios de farinha de trigo para as peças íntimas, toalhas e alguma coisa mais extravagante para o almoço do domingo, como um peixe salgado, batatas ou meio quilo de carne-seca.
Isto feito, se punha a caminho. Aquele ritual dos cumprimentos mais uma vez sacramentado. Acendeu o cigarro e se foi.
Ventava um pouco mais naquele dia e por isso seu cigarro se apagou depois de já ter caminhado um bom pedaço. Retirou o isqueiro e tentou acender, mas a insistência da ventania não permitia. Então “raciocinou”: virou-se de costas para o lado em que soprava a brisa. Mole! Acendeu na primeira tentativa. Satisfeito, pôs-se novamente a caminhar.
Daí a pouco o pessoal remanescente viu o Pirulito apontar na curva do caminho. Haveria de ter esquecido alguma coisa, ninguém estava pensando em outra possibilidade.
Chegando à venda, parou espantado sem saber o que dizer. O Pirulito esquecera de voltar o corpo na direção para aonde ia, caminhou de volta e ainda deixando lá no mourão da cerca o saco com as compras! Refez toda a despedida e partiu de novo, largando vez por outra escapar uma fumacinha do pito aceso. Então surgiram até apostas de uma caninha ou duas de que ele ainda voltaria mais uma vez, bastasse o cigarro apagar novamente.
Não! Voltou, não! Chegou à sua casa e ali sim, deu por falta do saco com as compras dependurado no mourão de braúna, pertinho do carrapeteiro.