Entrou no consultório rindo, cumprimentou-me e antes de sentar, perguntou:
O senhor é o que do sô Nenga?
Respondi-lhe ser meu tio e ele emendou em elogios e referências que qualquer pessoa gostaria de receber. Por sinal, apesar de ter convivido pouco com ele, tio Nenga foi realmente uma pessoa fora de série. Se várias pessoas me disseram sempre o mesmo é porque era pedra noventa, como dizia meu avô, seu irmão. Dizer maldades, muitas pessoas falam e de graça, mas elogiar… Realmente o tio Nenga foi uma pessoa que mereceu ter nascido.
E eu, que já não gosto nada de um papo, olhei na tela do micro e vi que ele era lá das bandas de Trajano de Morais. Não me lembro mais do seu nome, mas era um negro alto, gordo, barrigudo, pescoço enterrado e cara larga e, o mais importante, alegre, de bem com a vida, riso solto. Gosto de gente assim. Engatamos num papo e quase esquecemos do exame. Quando fiz referências à origem dele, começou a me falar de onde nasceu, na fazenda do fulano, perto do sicrano, como se eu conhecesse tudo por ali e nós adorando aquilo tudo. Arrisquei, dizendo que meu bisavô veio da Itália e foi morar no Sítio Preto, ali na Ponte dos Bravos, no antigo município de S. Francisco de Paula. Pra quê!
Deitou falação! Fiquei sabendo que viviam numa propriedade rural onde se plantava de tudo, desde árvores frutíferas, cereais, hortaliças, criavam porcos, galinhas, o diabo a quatro. Relatou também que aos sábados ele e o seu pai, sem referência a mais ninguém, levantavam ainda com escuro para colher coisas na roça, carregar os burros com as caixas e os balaios lotados e venderiam tudo em Macuco.
Olha, doutor, os burrinhos subiam aquela serra do Júlio Badini envergados de tanto peso. Eu não tinha muita noção e tacava tudo para cima dos bichinhos. Às vezes, a força era tanta que eles chegavam a soltar uns traques, o senhor entende, né? Traque que nada! Era cada canhão que até eu escutava lá na frente. Virava para trás e via meu pai abanando o nariz com o chapéu, modo espalhar o fedor. Tinha vontade de rir, só que não era doido. O cacete comia. Quando a gente chegava lá na cidade não precisava nem guiar os danadinhos. Eles iam direto para debaixo de uma sombra daquela árvore que ficava… Patati, patatá, como se eu conhecesse tudo lá como ele. Continuava:
Quando chegava no lugar certo nem era preciso falar ou fazer nada: todos já deitavam e arriavam a carga. E o pessoal já vinha comprar. Sô Nenga já pedia meu pai para mandar cem laranjas e a gente ficava muito satisfeita, porque ninguém comprava tantas laranjas assim de uma vez só. Acho mesmo que sô Nenga nem precisava de tantas, mas era para ajudar. Homem bom! Eta-ferro! E quanto mais depressa a gente vendesse aquilo melhor, pra voltar logo.
Arrisquei dizer que era bom ir à cidade, porque lá ele poderia comer alguma coisa diferente, chupar algum picolé, tomar guaraná, essas besteirinhas que toda criança de roça se deliciava. Eu, por exemplo, ficava doidinho de vontade de comer um pão recheado de manteiga, gente! Não havia e era a coisa mais deliciosa quando em dias especiais, assim como Natal, aniversário do vovô, por exemplo, a vovó comprava da cooperativa uma latinha de manteiga e pães frescos. Festa, bicho! A gente ficava passando a língua naquela manteiga um tempão, para não acabar depressa. E rosca com açúcar? Pão com azeite doce? Hum! Não têm o mesmo sabor hoje. Será por que? Fiquei velho, claro! Elementar, meu caro!
Comia nada, doutor! Quando a gente voltava, aí sim, ia comendo alguma coisa pelo caminho. O dinheiro que era apurado só dava para comprar as coisas que a gente não tinha lá em casa.
Arrisquei de novo dizer que ai os burrinhos iam mais animados, devido estarem voltando para casa e a carga agora não era tão pesada.
Senhor que pensa! Meu pai tinha a mania de colocar tudo em um só e na semana seguinte aquele descansava e assim ia. O senhor compreende, né? Pois é! Colocava ali dentro do cesto, mantas de carne seca, cebola, alho, azeite, tudo. Mesmo assim os bichinhos sabendo que estavam voltando para casa, iam trotando alegres e aqueles troços balangando e misturando lá dentro. He! He! He! Quando a gente encontrava alguém no caminho, nego gozava, dizendo que a cozinha tava funcionando legal, a janta já estava pronta, essas coisas. Era um cheiro de cebola… Troço danado pra catingar longe, não é não, doutor?
Fez uma pausa, tirou o lenço e enxugou a testa ligeiramente suada e depois, já quase não aguentando falar de tanto rir, arrematou:
Quando chegava no terreiro, era só tirar a carne seca do balaio, tacar o canivete na bicha e comer ali mesmo. Tava tudo temperado, doutor, aqueles troços lá dentro tudo misturado, cebola, azeite e sal já tinha. Às vezes até açúcar e farinha vinham juntos. Batia com as costas da mão na carne-seca modo tirar as farinhas e mandava brasa! “Virge Maria”! Era uma farra!
Então eu arrisquei, quase apostando na resposta:
Você tem saudade daquele tempo?
Tem nada! Hum! Hum! Nem se fosse para voltar a ser menino de novo, eu não queria. Era só penúria, ver sol levantar, sol ir embora, noite chegar. Tudo a mesma coisa. A vida toda assim. A gente não tinha nem um pinguinho de esperança de que mais pra frente as coisas iam melhorar. Não tenho muito não, doutor, tenho quase nada mesmo, mas…
Agora ele não conseguiu falar mais nada. Tirou novamente o lenço e enxugou os olhos. E eu com cara de tacho. Não era a resposta que eu esperava. Não tive a felicidade ou a inteligência suficiente para entender, naquele momento, que nem todos os meninos puderam ter a infância que eu tivera. É duro ter que viver num mundo assim. Até quando?