O FORD DE COLHER
Contos  |  Segunda-feira, 21 Fevereiro, 2022 13:01  |  Visitantes e Leitores: 1454  |  A+ | a-
Dr. Dirceu Badini

Meu avô gabava-se de não ter sofrido nenhum acidente nos seus vinte e sete anos de motorista e já tinha oitenta anos e fumaça de idade. Verdade! Também se gabava de ter sido o dono do primeiro caminhão naquelas bandas. Não posso ser testemunha disso, mas de um homem que acreditava que um fio da barba colocado sobre um documento ter tanto valor quanto a sua assinatura, eu posso garantir: pura verdade! 
Vovô era um trabalhador braçal no início da sua vida e com a Vó Zipina tocavam lavoura na fazenda do Batistinha. Cultivavam o que a terra permitisse e eles próprios se encarregavam de roçar, capinar, plantar, colher…Até que o senhor Mundinho, quase certo, devido aos fios da barba do João, propôs uma sociedade e montaram uma venda na Caixa Grande.
Lugar de muita gente e estratégico, pois ficava perto dos Órfãos, da Lagoa Feia, do Córrego dos Santos, Paraíso, Alto e Macuco. E tudo fluiu e prosperou rápido a ponto do meu avô lá colocar o seu irmão Nenga, ainda bem jovem, como caixeiro. E com o tempo e os negócios crescendo, ele achou por bem adquirir aquele caminhão para aumentar a renda com os fretes e comprar mais em conta, pois sempre se abastecia em Macuco, distante merrequinha de quinze quilômetros, por aí.
Pois meu avô foi o proprietário do primeiro caminhão. Um “Ford de colher”. Isto deve ter sido o apelido do possante, porque os pedais lembravam, na sua forma, uma colher emborcada. Interessante que a máquina tinha quase tudo das de hoje, com pouquíssimas diferenças. Uma: dois pedais – as colheres – uma para freio e outra para embreagem. Acelerador na mão, junto ao volante. Alavanca de mudanças de marcha? Existia, claro! Empurrada para cima, no lugar da moderna primeira, aquela coisa andava pra frente; no meio, ponto morto e para baixo, marcha à ré. Mais do que simplificado. Tudo no jeito para os barbeiros.
Então, depois de o motor pegar, movimentado pela manícula – imagino – pisava-se fundo na embreagem, colocava a alavanca para cima, soltava o pedal (a colher da esquerda) até a metade do seu curso e ele estava engrenado na primeira. (Ah! Tá na cara que andava, ô mané! Onde já se viu caminhão que não anda?) Quando embalava um pouco, soltava o resto do pedal: pris, dizia meu avô. Custei muito entender a pris, mas descobri tratar-se da última marcha, palavra de origem francesa e se escreve prise e se pronuncia como meu poliglota avô falava. E que pronúncia! Sem um sotaque! Pris!
O caminhão não tinha portas e segundo meu pai, gozador puro-sangue e de invejável linhagem, propositalmente para facilitar a rápida saída do ajudante com um bitelo de um pedaço de pau para escorar as rodas do maldito. Se subia um morro e o motor não aguentasse com a colher esquerda apertada até a metade, você afundava todo o pé esquerdo, fazia o pelo-sinal, botava força e reza forte na colher da direita na tentativa de parar e segurar aquilo para não desembestar pra trás. O calço na roda era um dos procedimentos rotineiros e mais eficientes. Depois, se ajeitavam umas duas juntas de bois e puxava todo aquele vexame lá para o alto do morro. E tome sufoco para descer o lado de lá.
Eu acho que vovô não teve muita sorte com aquele caminhão. De princípio, ele ia a Macuco uma vez por mês; depois de quinze em quinze dias e mais tarde quase todos os dias. Zipina, coitada, semianalfabeta por questão dos hábitos locais e da época, não era burra. Craniou que “Jão” não estava comprando tanta coisa assim. Tinha mutreta no pedaço. Não deu outra. 
Um belo dia vovô se mandou e ela deu um tempo, pegou o cavalinho e se pôs a caminho. Teve de dar uma boa distância para o feliz e despreocupado motorista, porque um cavalo de marcha picada anda pra cara…(Ops! Aqui não pode! Muda!) anda à beça e logo, logo ela pediria “caminho” para eles.
Vovô nunca poderia imaginar tal situação, mas, convenhamos, foi muito ingênuo. Uma cidadezinha desse tamanhinho, meia dúzia de ruas e um único caminhão parado sempre naquele lugar…Não tinha erro. Era ali. Cara! E ela tinha razão. “Jão” não estava comprando nada; tava papando de graça e, mesmo assim, ela ficou tiririca. Havia lá uma dona dando pra ele. O pau – o de madeira – quebrou feio e também não garanto nada se o outro não recebeu algum tratamento próprio para essas ocasiões. A “veia” era tinhosa, descendente de calabreses e desse tamanhão, ó!
Outra vez o caminhão serviu para vovô fugir pro mato com um bando de companheiros seus, integralistas, os camisas-verdes. Essa gente enchia o saco do Getúlio e ele achou que esvaziaria o seu cortando os deles. Uns poucos companheiros fiéis ao anauê que eu conheci e politicamente falando, eram uns bundas moles assumidos e se aquilo representava mesmo um movimento político, Plínio Salgado estava no mato sem cachorro.
Não sei quanto tempo ficaram escondidos e nem sei para aonde foram, mas uma coisa percebi muito tempo mais tarde: vovô e vovó “viraram” getulistas roxos. Pode? Meu Deus do Céu! Quanta paixão! Havia um retrato do GG, todo sorridente, pendurado no lugar mais nobre da parede da sala de visitas e se destacando no meio aos dos outros da família.
Me passa agora pela cabeça que a velha botou aquilo lá como um lembrete para vovô. Andava por lá o cabo  Otto. Eu o vi certa vez. Um monte de homem, gordão, barrigudo, vermelhão e escarrapachado em cima de um monte de mula. Eu pelava de medo dele. Diziam ser mau como uma praga pelada.
Tenho a impressão de que a Zipina botou aquilo lá para “Jão” não tretear de novo, senão ela entregaria o camisa-verde para o cabo Otto. Brincadeirinha! Brincadeirinha! Que isso! Será? Integralista virar getulista assim, mole, mole, sem arrocho nenhum? Tô pagando pra ver!
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