TAPERA
Crônicas  |  Segunda-feira, 31 Janeiro, 2022 7:56  |  Visitantes e Leitores: 1480  |  A+ | a-
Dr. Dirceu Badini
Continua lá fazendo parte das terras que antigamente foram do meu avô. O Córrego dos Índios, o Lajeado, a estrada, a matinha rala, pedras, furnas… Colocados assim como pedaços ou recortes de um cenário sobre a mesa não dizem da beleza do lugar, mas as peças agrupadas, só poesia e paz na alma.
O Córrego dos Índios passa por ali aprontando coisas que normalmente não faz: pula pedras, forma cachoeiras e dá cambalhotas como criança sapeca, esconde por dentro das grutas das grandes pedras presas pelas raízes centenárias e egoísticas da figueira imensa. Depois dessa farra toda, amadurece, toma juízo, abraça o Lajeado, seu principal afluente e segue manso.
O Lajeado é formado por três ou mais filetes de água que brotam nas serras da Don’Anna, do Arria Saco e do S. Bento. Ajuntam-se na fazenda da Serra, formando um pequeno poço e abraçando uma grande pedra arredondada onde eu, Tipedro, compadre Otávio e Alexandre combinávamos o encontro para comer a matula, bater um papinho e saber das vantagens ou esfregas dos companheiros naquele turno das muitas caçadas nas épocas das férias.
Cedo, ainda escuro, saíamos de casa e nos juntávamos ao Tipedro no trajeto. Além da farofa e da garrafa de café, meu tio nunca deixava de levar junto ao farnel uma garrafinha de cachaça da boa que ele e o compadre Otávio muito apreciavam. Tipedro já esqueceu a sua espingarda em casa, mas duvido que tenha esquecido alguma vez a branquinha.
E ali, à sombra do que restou da antiga mata, comíamos o farnel e – nunca me esqueço – pegávamos, às margens do córrego, agrião verdinho e de folhas parrudas naturalmente nascido ali – nativo – como dizia o Tipedro com a sua entonação de voz característica. Água era servida do próprio poço com a ajuda de uma folha de inhame brabo, presa pelas bordas em forma de uma concha.
O Lajeado desce algumas quedas ou desviando-se das pedras pelo caminho e depois entra na mansidão dos meandros nas pequenas várzeas de aluvião, trabalho seu em pacientes anos e anos. Nas terras da dona Zizinha ele despenca do alto e, se tivesse mais volume, seria gostoso de ver e ouvir. Logo após, escorre por um lajedo em declive, contorce por fendas, saltinhos daqui e dali, deixando na sua passagem a pedra lisa e cheiinha de ondulações, numa das suas teimosas tarefas de mudar as coisas ao seu redor.
Até meu pensamento ele consegue vacilar. Sento na pedra lisa e aquecida pelo sol. Deixo a alma sair, vagar. Flutuo em transe e delírio. Ventinho fresco na face. Coisas inimagináveis acontecem: um surdo fazendo a marcação, o bater inconfundível e arrepiante de um repenique, matraquear incessante dos tamborins alucinados; a cuíca, os chocalhos; a plateia delirante perfilada e encarnada nos fiapos de arbustos das margens e, as folhas mortas arrancadas pelo redemoinho do saci, sobem e caem como serpentinas ou confetes. Na poça maior, giros e giros, bolhas… Respingos coloridos penetram no ar, pedacinhos de arco-íris múltiplos… A espuma rodando incansável me faz projetar baianas e suas vestes embrutecidas e graciosamente rendadas. Terminado o desfile alucinante, invade a parte plana e larga do leito e passa quieto, estafado sob o arco dos pilares da ponte e se dispersa na corrente maior do Córrego dos Índios.
Estão lá, belas como sempre foram, a estrada Tronco Norte correndo paralela ao córrego, a ponte sobre o Lajeado, a moita de bambu açu, a figueira, as pedras, as furnas, a matinha rala das raízes à mostra e lambidas pelo Lajeado, a estrada que vem da serra… 
Ninguém nunca morou ali. A Tapera é mal-assombrada. Gente, só de passagem, entregando o leite para o caminhão ou para viajar no ônibus. Ninguém se aventurava, ainda mais se anoitecia. 
Quando menino os meus medos moravam ali, desconfio. Lá nunca pesquei à noite, mesmo sabedor que havia muitos cascudos e bagres enfurnados naquelas locas de pedras e que saiam para se alimentar após o pôr do sol. A ponte era palco para arrepiantes exibições de fantasmas desocupados sobre o corrimão de cimento frio, agitando e fazendo tilintar suas pesadas correntes, gelando o sangue de gente aventureira e corajosa. Zumbis e mais zumbis por ali desfilavam suas magrezas e seus olhares de mortos-vivos e tantos eram os esquifes expostos que cavaleiro nenhum, por mais que esporeasse o animal, fazia-o prosseguir.
Continua lá vigorosa, bela e imutável aquela encantadora paisagem que eu sabia até admirar durante o dia, mas nem de longe queria pensar nela à noite. Pavor. Insônia. Suores. Não me importunam mais o canto apavorante do corujão, do bacurau ameaçador, do urutau fedorento ou da rasga-mortalha treinando seu voo rasante em cruz para marcar, sem erro, a casa de quem morreria em breve. 
Meus temores foram desvanecendo lentamente. Não me importam mais os zumbis, almas penadas, mula sem cabeça e tudo o mais. Pode ser que todos ainda estejam lá para alguém. Não me fazem mais nenhum mal. Não mais me apavoram. Não mais me amedrontam. Tenho até certo carinho por eles: fizeram de alguma forma parte de um pedacinho da minha vida que já se foi.
A Tapera continua a mesma. Eu mudei! Que importa? Que ela seja eterna!
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