PROBLEMAS
Contos  |  Terça-feira, 9 Novembro, 2021 10:44  |  Visitantes e Leitores: 1513  |  A+ | a-
Dr. Dirceu Badini
 – Estou com um problema na família!
 – Só um? Miserê, companheiro!
 – É! Mas se trata de mim, de Alice – minha neta – do sabiá e do Killer, um Yorkshire de, no máximo, dois palmos de ponta a ponta!
 – Ta maluco? Onde já se viu sabiá e cachorrinho serem elementos consanguíneos da família?
 – Não estou maluco. "Sou maluco, mas não o suficiente!" (Esta última frase grifada eu plagiei do Dr. Ivo Kelis, uma das inteligências mais extraordinárias dentre as muitas outras com as quais tive a glória de ter convivido, em resposta ao entrevistador em um programa de televisão local).
Não estou conversando com ninguém. Eu comigo mesmo. Rotina. Há algum tempo eu imaginava ter dois cérebros: este que pensa e aquele que não consigo dominar, geralmente um extravagante, irresponsável, fora da lei e que age por instintos. Manter-me vivo, sua principal função pelo meu julgamento. Hoje já admito que nós tenhamos um monte de pequenos cérebros, conscientes ou não, agrupados dentro de toda esta massa encefálica e que cada um desempenhe seu papel, raramente sozinho, estando todos, de um modo geral, independentes, dependentes ou interdependentes. Não é coisa de doido? Nem ligo! Qual o limite, a vertente das águas que separa um normal de um doido, por exemplo? Quais os parâmetros? Você sabe? Somente por que eles são em menor número? Eu ainda não estou convencido!
Então! Pelo que eu já sei, temos nos nossos cromossomas genes que veem de longa data se repetindo nas diversas gerações e evoluções grudados às novas espécies que surgem. Assim no meu genoma ou no da minha neta podem haver genes assim ó! Da minhoca, por exemplo. Isto é uma verdade, pelo menos até agora. Ora, não é preciso sacrificar o meu cérebro admitir que eu, minha neta, o sabiá e o Killer temos no nosso corpo elemento-chave de parentesco biologicamente muito afim e, portanto, somos parentes desde há milhões ou mais de anos passados. Não legais, mas biológicos, sim ou provavelmente?
Mais ainda! Temos algumas preferências comuns na alimentação, por exemplo. Gosto de bananas, Alice é tarada pela fruta e também o sabiá; Killer não é muito ligado. Mas o Killer é vidrado na ração, comida humana e descobri recentemente que o danado do sabiá – aquele que beliscava todas as melhores bananas na gamela da mesa de pedra ali no que foi projetado para ser garagem - conforme já contei – adora comer ração do cachorro. Se der sopa, Alice também. Já até provou! Cheguei mesmo - inclusive a Maria - achar que era um cãozinho safado daqui da rua que não podia ver o portão aberto e comia toda a cota do dia do Killer, depois de lhe dar uma boa sova. Quebramos a cara.
Não era. Eu vi a sabiá pousar na mesa de pedra, pesquisar o ambiente, voar para o chão e baixar com tudo em cima da ração. Comeu à vontade, encheu a moela, voltou para cima da mesa, perscrutou ao redor, deu uma cagadinha no tampo e voou. Ladrão safado, mas você também já não tomou conhecimento de humanos que roubam residências e defecam lá? Eu vi! Não estou inventado nada. Na situação atual do Brasil, acho que aqueles genes estão até se alastrando em muitos brasileiros. Biólogos ou sei lá quem: assunto quente para mestrado e etc.! E mole de achar!
Para minorar as consequências maléficas que ainda tenho da minha infância quando matei muitos passarinhos, eu agora estou incutindo na Alice o hábito de admirar e cuidar dos passarinhos. Todos os dias converso com ela e vamos a um lugar escolhido, deixando lá uma banana ou qualquer fruta do gosto dos sabiás, sanhaços, saíras ou qualquer bicho que goste do que lá estiver. Minha filha levou-a ao Shopping e o que mais ela gostou da exposição foi dos periquitos. Fiquei arrebentado de orgulho. Mais uma vez!
Pô! Arranjei outro problema. Explico: Alice já balbucia algumas palavrinhas curtas. Pega a banana, vai falando “papá” e dependurada no meu colo, pois somente engatinha e o piso lá é de pedras, não muito próprio, convenhamos. Coloca a fruta no caixotinho. Pego-a e retiro uma pequena tira da casca para facilitar as coisas para os primos passarinhos. Aí a Alice cai na birra e quer porque quer comer a banana. Se não descasco, tudo bem. É um Deus nos acuda: Alice reclamando de um lado e o sabiá cantando perto, naturalmente chiando também da falta de cortesia da priminha distante.
Tem mais. Dia desses, Alice estava uma praguinha. Não dava sossego. De quatro pés ela é inimitável. Senta o pau; “anda” pra lá e pra cá e só quer bulir com aquilo que não pode. Lógico! O resto já não é novidade. Mércia, sua mãe que já não estava aguentando a barra, deu um berro:
 – ALICE! Imediatamente ela estacou e ficou sentada com os pés e as perninhas viradas parar traz, apoiada na bundinha e nas duas coxinhas. Pronta pra nova arrancada e se você prestar atenção, é a atitude mais lógica para uma disparada sem perder muito tempo. Ficou assim olhando para a sua mãe que ainda completou:
 – Se você não tomar jeito, eu vou comprar uma coleira e amarrar a cordinha em algum lugar!
Ela olhando, muito atenta e sem menor reação. Virou-se rápido para aonde ia e disparou balbuciando alguns sons sem significado para nós adultos. Também ela não entendeu patavina do que a mãe dissera, garanto. Viu só: sem nada saber das minhas fantasias, a minha filha, atavicamente, decerto, relacionou o humano com o Killer, ameaçando-a com a coleira. Pronto! Fechou-se o ciclo: humano, cão e sabiá.
Até aí nada de mais extravagante: pensamentos, só pensamentos de alguns dos milhares de cérebros, segundo a minha “maluquice insuficiente”, mas o que aquela cena transformou na minha visão foi um quadro fantasioso e maluco total. Assim: Alice sentada naquela atitude dita acima; coleirinha florida, caprichada, até que bem maneira no pescoço e a cordinha atada ao pé da mesa. Ela estava com o tronco inclinado e apoiado nos dois bracinhos e olhando fixo, rosnava mostrando os quatro dentinhos serrilhados e ameaçadores para um patife de um sabiá ali perto e prontinho para dar o bote na ração dela. Naturalmente ela estava defendendo o “patrimoniozinho” alojado numa cumbuca ali perto.
Ai! Protetores dos aflitos e dos fritos também! Será que existe diarreia cerebral? Se não, eu hoje estou com uma bruta enxaqueca de novo!
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