ZÉ DO PEDRO E SEU CARRO DE BOIS
Contos  |  Quarta-feira, 27 Outubro, 2021 15:47  |  Visitantes e Leitores: 1428  |  A+ | a-
Dirceu Badini
 Zé do Pedro era o seu nome. Negro de estatura mediana, forte, pele fina e lisa, pouca barba e dentes divinamente brancos. Quando ria, e o fazia com frequência por estar sempre de bem com a vida, eram os dentes os mais notados à distância.
 Nascera por ali mesmo e seus limites restringiam-se ao Lajeado, Córrego dos Índios, Caixa Grande e raramente se aventurava lá pelo Córrego Santo ou Alto. Era esse o seu mundo. Pequeno, cerca de uns vinte quilômetros na maior distância.
Sua profissão era carreiro e, para quem não sabe, é a pessoa que trabalha com carros de bois. Acho que nunca fez outra coisa na vida e nem precisava: era um mestre, Ph.D.! Vez por outra cismava em amansar um potro ou um burrico. Também não deixava a peteca cair nesta tarefa.
Seu carro era construído de boa madeira. As chedas eram de peroba rosa e o cabeçalho feito de uma peça inteiriça de guarabu. Os cocões e o eixo de aroeira ou de óleo vermelho e as almofadas de sanandu, sempre bem lubrificadas com puro óleo de mamona, misturado ao carvão moído que sempre trazia guardado num chifre pendurado no lado direito da cheda. Às vezes, parava o comboio e untava o eixo e as talas. Sabia como bem cuidar da sua ferramenta de trabalho.
O carro do Zé cantava grosso. Nas rodas havia dois olhais bem trabalhados e as chapas sempre brilhantes. Pinos salientes enfeitavam a parte mediana dos rodeiros. Os fueiros eram os mais certinhos. Tinha o cuidado de retirar os paus na lua minguante, procurando sempre por grumarim ou ipê e se esmerava em retirar deles qualquer tortuosidade, esquentando a madeira ainda verde num foguinho baixo, corrigindo as imperfeições e após, os descascava.
Caprichosamente, com o facão bem afiado e sempre pendurado no cinto de couro cru, desbastava a parte mais grossa do pau para encaixar sem folga no buraco existente na cheda. Na outra parte ele fazia o ganzepe para segurar a corda das amarrações, não a permitindo escapar. Os canzis eram também feitos por ele a golpes de facão ou da enxó sempre amolada antes do uso.
Era assim sua lida. Se não estivesse carreando, estava olhando e dando manutenção ao carro, azeitando o eixo, passando sebo derretido ou banha sem sal no tamoeiro e nas brochas, inspecionando as cangas e por vezes, caprichando numa vara de ferrão.
A dele era bem diferente das dos outros carreiros: o ferrão era constituído de duas partes, originando uma argola central e de cada lado, dois ou três pequenos anéis agregados de modo a produzir, quando agitados, um som semelhante ao do chocalho. A chapa que reforçava a ponta da vara foi cortada de certo tamanho de um tubo de metal amarelo introduzida na ponta do pau com um tufo de pelos da crina de cavalo, de maneira que o ferrão ficasse escondido dentro daquela cabeleira.
Dificilmente o Zé do Pedro ferroava os bois. Ele tinha carinho por eles. De uma maneira geral estava de pé no cabeçalho, mão esquerda segurando o primeiro fueiro e a direita mantendo a vara ereta e apoiada na madeira da cheda. Vez por outra a agitava para os chocalhos estimularem os bois.
O candeeiro, à frente da guia, colocava a vara atravessada nos ombros, passava os dois braços sobre ela, tal como um carregador tailandês, e ia… Chutando um matinho aqui, dando uma corridinha atrás de uma borboleta desmiolada, zigue-zagueando pra lá e pra cá ou assobiando para chamar o canarinho amarelo trinando empoleirado na carrapeteira.
Os bois eram muito bem domados. Normalmente, os do coice eram maiores e de grandes chifres, junta com mesmo peso, cor e parecença. Na guia, tinha o cuidado de colocar também dois bem fortes e as do meio, uma, eventualmente duas, não havia necessidade de ser parelha. Quase sempre havia alguma ali para ser amansada para outro proprietário.
E assim eles iam: carreiro, bois e candeeiro indolentes, preguiçosos e o carro sempre gemendo. Sincronizados. Bois com as cabeças ligeiramente abaixadas, andar preguiçoso, uns mascando alguns molhos de capim gordura, ramas de capim angola ou um pedaço de cana perdido na viagem anterior; olhos quase fechados e de vez em quando agitando a cauda para espantar uma atrevida mutuca ou a varejeira ávida procurando um pequeno ferimento para depositar seus genes e cumprir a divina e principal obrigação de perpetuar a sua espécie. Pareciam autômatos, zumbis mal diferenciados e sonolentos, até que o Zé percebesse alguém observando. Então ele e tudo mais se transformavam.
De cara, largava a mão esquerda do fueiro e, agachadinho, apoiava-a sobre a anca do boi Senado, deitava a vara entre os chifres do Ouro Fino para cutucar o Laranjo, um dos que estava sendo treinado. E aí era o caos! Um caos, por incrível, organizado. Todos participavam, à sua maneira, como se alguém apertara um botão. O som das vozes do Zé, misturado ao canto do carro e mais a voz do candeeiro, meninote na fase da puberdade, que falava fino, outras vezes gritava grosso…
 – “Vorta” Brasil!” Vem cá Brasileiro! Aei! Fasta “Coroné”!
      - Segura a guia, moleque! Numfroxa” não! “Arruma”, boi safado!
    Gritava também o Zé, nessa altura já no chão pela impulsão do corpo sobre a anca do Senado. Andava para frente, voltava, passava a vara por cima da canga de uma junta para esbarrar de leve o ferrão no boi do lado oposto e isso tudo sem parar de falar ou gritar. E o menino, lá na frente, já transformado numa caricatura de espadachim matuto, figura nunca vista, decerto: andando de costas e nas pontas dos pés descalços, segurando sua vara como a melhor dos espadas, apoiava-a sobre a canga do Brasil e do Brasileiro, braço direito reto à frente e prolongado pela vara; braço esquerdo aberto para o lado e ligeiramente para trás, camisa aberta ao peito, sempre esfarrapada na luta eterna da pobreza e da miséria contra a sobrevivência, falando fino, falando grosso... Tudo isso numa confusão incrivelmente encantadora.
Depois desta demonstração rápida e, tão depressa como começou, tudo voltava à calma. O Zé olhava para sua plateia, segurava a aba do chapéu de palha com o dedo polegar e o indicador e os outros três dedos eram passados pelo cabelo já manchado de cinza e abria o largo sorriso, mostrando aqueles invejáveis dentes brancos, agradecendo aqueles aplausos somente percebidos por ele.
Apoiava um pé no olhal, segurava num fueiro e o movimento da roda elevava-o ao ponto de pular sobre o cabeçalho, sua ponte de comandos. Lá na frente o candeeiro não retornava à figura do carregador: colocava agora a vara no ombro direito, arrumava o chapéu tombado para o lado e voltava a ser ele mesmo.
Mas o Zé tinha um senão. Não era um mentiroso, mas se alguém lhe contasse um caso de que gostasse, tempos depois narraria para uma outra pessoa como se aquilo acontecera com ele, fora o ator principal, o herói e por ai afora.
Numa manhã de domingo, lá na porta da venda, gente à beça: uns fazendo compras, outros do lado de fora conversando e tomando pinga, chegou o Zé montado no seu cavalo e, já a boa distância, começou a se exibir, a se amostrar”, como se referiam por lá.
Os cavaleiros chegavam devagar, procuravam um tronco ou galho de uma árvore, uma régua de curral ou qualquer outra coisa para amarrar o cabresto do cavalo. O Zé também. Mas antes, tinha que espichar as pernas forçando os loros através dos estribos, retesava ligeiramente as rédeas, ao mesmo tempo em que esporeava, batia de leve com a vara fina de um lado e de outro nas ancas do cavalo, fazendo o animal quase sentar. Esporeava de novo, soltava e novamente puxava mais ainda as rédeas, obrigando o animal girar num pequeno rodopio e com as patas dianteiras levantadas. Só depois disto, retirava o chapéu… E abria o sorriso cumprimentando a turma. Agora sim, procuraria um lugar para deixar descansar o ofegante pangaré.
Quando eu cheguei com meu pai, a roda já estava formada: Zé no centro, o restante circulando-o e rindo a valer! Quando pudemos ouvir, ele estava narrando uma aventura e um sufoco danado que passou quando era maquinista do trem de ferro. Eu tenho muitas dúvidas se o Zé algum dia vira um deles!
Estava responsável por aquela composição que subia a Volta da Ferradura. Sentia que a pressão do vapor estava diminuindo. E ele só não falava como fazia gestos: ao seu modo, puxava uma invisível alavanca; às vezes, inclinava seu corpo para um lado, como se estivesse olhando por uma janela, ia de um lado, ia do outro lado, passava a mão pela testa como se estivesse limpando o suor, puxava a cordinha do apito para avisar os guarda-freios para assumir seus lugares; esbravejava, xingava e chutava o foguista. O culpado era o foguista que não estava alimentando satisfatoriamente a caldeira! Ele massacrava o pobre coitado!
A plateia, nesta altura, já estava composta até pelos caixeiros da venda que saíram para ouvir o Zé. E no meio daquela galhofa toda, ele disse:
 – Vocês estão pensando que é mentira?
 – Que mentira que nada, Zé! É porque você não se lembra mais. Faz tanto tempo. O foguista daquele trem era eu!
Disse meu pai, afastando-se puto da vida com a balela do Zé e fazendo aquele gesto clássico da mão direita fechada, antebraço fletido e a mão esquerda aberta batendo forte contra o braço em elevação e completando:
 – Aqui ó, “procê”!


 
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