A mulher era muito falante, exalava feminilidade e bastante bem articulada. Era bonita e extremamente gentil. Falava com invulgar delicadeza, senso crítico, oportunidade e, sobretudo, perfeição. Pouca gente diria tratar-se de uma farsante. Mas era. Dra. Simone era uma falsa psicóloga. Exibia com orgulho um falso diploma de uma universidade do interior de São Paulo e outro diploma, igualmente falso, de um curso de especialização na Universidade de Columbia, em Nova Iorque. Mas era apenas uma boa estudante que, desde a infância, sofria de transtorno bipolar com muitos episódios de mania e euforia e, raramente, de depressão profunda. Sem razão aparente – eu sei que foi uma fase depressiva – fechou um bem sucedido consultório em Belo Horizonte sem dar maiores explicações à família e aos “clientes”. Era divorciada há dois anos. Tinha dois filhos pequenos, cuidados por sua mãe, desde que Simone – ou a falsa Dra. Simone – divorciou-se, por escolha do marido, que não suportava aquela situação de falsidade profissional, receoso de ser penalizado por cumplicidade sem mesmo saber que tudo era parte dos sintomas da doença que acometia Simone. Assim, sem mais nem menos, Simone mudou-se para Pernambuco, deixando para trás, mãe, filhos e um irmão mais novo. Seu verdadeiro nome nunca chegou a ser bem conhecido. Era chamada de Tânia por diversos familiares e alguns amigos. Outros a conheciam como Tereza Bonfim, enquanto sua ficha policial, que não era das mais curtas, continha uma meia dúzia de outras identidades pelas quais também era conhecida. E, curiosamente, cada um dos nomes que utilizava referia-se a uma personalidade com características próprias, bem distintas e, algumas vezes, marcantes. Coisa que só bons atores – atrizes no caso em questão – conseguem fazer. Eu, na ocasião, era investigador da delegacia de polícia do bairro de Boa Viagem, situada à Avenida Domingos Ferreira, paralela à Avenida Boa Viagem, em frente à praia e onde residem os bem sucedidos de Recife. Fui eu quem descobriu a farsa profissional e investigou o caso de Tânia ou de Simone, segundo ela mesma. Para entender bem o que houve, é preciso contar mais um pedaço dessa história bastante curiosa e peculiar. Eu adoro futebol. É meu esporte favorito. Quando jovem, joguei futebol até ser diplomado pela Escola Superior de Polícia Civil do Paraná. Depois da graduação fui contratado pela Secretaria de Defesa Social do Estado de Pernambuco, no cargo de investigador. Após alguns anos, tornei-me um torcedor ardoroso do Santa Cruz Futebol Clube, o chamado tricolor do Nordeste e arquirrival do Sport Clube do Recife e do Clube Náutico Capibaribe. O Santa Cruz é considerado um dos três clubes de maior torcida de Pernambuco. Com os seus maiores rivais, o Sport Club do Recife, disputa o Clássico das Multidões e com o Clube Náutico Capibaribe, disputa o Clássico das Emoções. Tânia, Simone ou Tereza Bonfim instalou um consultório no bairro dos Aflitos, na Avenida Conselheiro Rosa e Silva, exatamente em frente à sede social do Clube Náutico e, pasmem, divulgou ser credenciada pelo clube para atender aos sócios com descontos especiais. Lentamente, alguns sócios passaram a procurar a Dra. Gabriele para consultas e tratamentos de seus problemas emocionais. Outros clientes eram encaminhados pelos clínicos da vizinhança. Um desses clientes era meu amigo pessoal, Toninho Sofredor, de apelido e nome de batismo Antônio Marques. O apelido foi dado por torcedores do Sport Recife que frequentavam a mesma praia que nós. Toninho era um torcedor fanático do Náutico e diz que após a série de consultas com a Dra. Simone passou a gostar de coisas que o repugnavam, dentre as quais água mineral, que substituiu por cerveja e, assustado, meio para o temeroso, disse que já gostava um pouco do Santa Cruz. E já não se incomodava quando o Náutico perdia ou empatava um jogo, mesmo nos jogos considerados “fáceis”. Nossa conversa foi bem interessante:Quer dizer que você foi à psicóloga, meu caro! É, fui até lá, sabe. Eu não sou muito de conversar com psicólogos não, mas essa até que é muito despachada. Explica muito bem o que está achando e é especialista em hipnose médica. Diz que resolve a maioria dos problemas com hipnose. Eu nem acreditei muito a princípio, mas ela fez uma demonstração que eu achei fantástica. Adormeci logo, como um bebê. E olha que eu custo a pegar no sono em casa, viu! E, assim que sai da consulta tive uma vontade enorme de tomar uma cerveja. O estranho é que eu não gostava de álcool, mas a cervejinha fez um bem danado. Mas você só bebia água, eu lembro muito bem. Quantas vezes eu insisti pra você tomar umas geladas na praia com a turma. Você nunca aceitou. Pois é. Mas nesse dia deu vontade de beber umazinha, ué! Que mal tem nisso? Nenhum, uma cervejinha gelada aqui nesse clima quente, só faz bem à gente!, respondi fazendo rima. É mesmo, você tem razão! Mas conta os detalhes da consulta. O que a psicóloga falou que você tinha? Não disse nada especial. Disse que eu andava meio nervoso e que precisava mudar algumas coisas na vida. Ela faria as mudanças durante o tratamento. Fizemos a sessão de hipnose e fiquei de voltar em uma semana. Toninho Sofredor, depois de um mês encontra comigo e diz meio preocupado: Tem alguma coisa estranha acontecendo no consultório daquela psicóloga que te falei. Encontrei vários companheiros da torcida organizada do Náutico – mais de dez, para falar a verdade – e todos dizem que após o tratamento com a Dra. Simone, deixaram de gostar tanto do time e passaram a gostar do Santa Cruz. O que você acha disso? É possível essa coincidência? Meu faro de investigador diz que essa sessão de hipnose pode ter tudo a ver com essa mudança repentina. Ninguém vira casaca desse jeito sem uma razão muito forte! Será? Você acha? Acho. Faz uma lista das pessoas! Eu vou entrevistar todas e procurar saber o que está acontecendo. Também vou marcar uma consulta com a Dra. Simone e ver pessoalmente esses tratamentos. Depois de conversar com cinco torcedores da lista de Toninho Sofredor anotei que todos foram submetidos às sessões de hipnose e tiveram várias mudanças em suas vidas. Um deles, o caso mais curioso, saiu do armário e assumiu que estava apaixonado por um sargento da polícia militar. Abandonou mulher e filhos e foi morar com o sargento. Além de trocar o Náutico pelo Santa Cruz. Chegou o dia da minha consulta com a Dra. Simone. Queixei-me de andar meio tristonho, apático, sem muita vontade de trabalhar e com dificuldades de manter relacionamentos mais sérios. Não conseguia manter os relacionamentos com mulheres por mais do que um ou dois meses. A psicóloga me assustou ao dizer que esse tipo de relacionamento de curta duração era comum entre os homens e a falta de vontade de trabalhar era preguiça, muito comum no Nordeste, devido ao clima quente. Fiquei preocupado com as opiniões da “doutora”. Vamos resolver esses problemas com algumas sessões de hipnose, meu caro amigo. Sim, estou ansioso para resolver isso tudo, falei com entusiasmo. Na semana seguinte a “Doutora” iria começar as sessões de hipnose. Antes disso, recebi sua folha corrida pedida à delegacia de Belo Horizonte. As fotografias de várias identidades eram da mesma pessoa. Cada ficha com um nome diferente, dentre os quais encontrei Tânia, Simone, Sílvia, Tereza Bonfim e Marina. Sempre como psicóloga. E o relatório da faculdade paulista chegou logo depois, indicando que a referida pessoa jamais estudara na instituição e a cópia do documento enviada para avaliação era uma falsificação grosseira dos certificados e diplomas expedidos pela faculdade. Com essas provas em mãos e os depoimentos de pessoas da lista feita por Toninho, fiquei pronto para a nova “consulta”. Ao entrar falei: Consta que a doutora já teve consultórios em várias cidades do país. É verdade, Dra. Tânia ou, desculpe, Dra. Simone? Cuidado com sua fala, meu caro amigo. Meu nome é Simone e não sei por que você trocou por Tânia de um modo que me pareceu proposital? O que há por trás disso? Bem, andei investigando seus “pacientes” e, ao que parece, suas consultas fazem mal às opiniões de muitos deles. O que há por trás disso, pergunto eu? Nesse momento Simone desfigurou-se; começou a falar alto e logo em seguida aos gritos que podiam ser ouvidos na sala de espera do consultório. Veja como fala e, principalmente, com quem fala, ouviu meu senhor? Eu tenho grandes amigos nessa cidade que são muito poderosos! Eu sei, eu sei muito bem com quem eu falo. Sou investigador da delegacia da área e estou no seu calcanhar, Dra. Simone. Quero ver como consegue mudar certos valores das pessoas com quem conversa. Isso é contrário aos bons costumes, principalmente se quem faz pratica falsidade ideológica via exercício ilegal de uma profissão. Simone começou a tremer, cada vez mais intensamente, até que entrou em uma crise convulsiva forte. Ficou com os lábios roxos, os olhos esbugalhados e a respiração pesada. Salivava muito. No início da crise tentou apoiar-se numa cadeira que derrubou enquanto caia. Na queda bateu com a cabeça no assento da cadeira que fez um corte profundo no couro cabeludo e encheu os cabelos de sangue. Tratei de proteger a língua para não feri-la com as mordidas que as convulsões provocavam. E fiz compressão para estancar o sangramento do couro cabeludo, enquanto com uma das mãos chamava o 192 pelo meu celular. Em poucos minutos, a meu pedido, Simone foi levada ao Pronto Socorro do Hospital Psiquiátrico de Pernambuco, onde foi atendida pelo Dr. Hermenegildo, que também era perito policial e conhecia o histórico de Gabriele. A medicação fez Simone (ou Tânia) dormir por quase dois dias. Mas acordou mais calma, sem saber onde estava e o que havia ocorrido. Logo perguntou: Quem me tirou do consultório? Como vim parar aqui? Que lugar é esse? Prontamente respondi: Aqui é o hospital psiquiátrico de Pernambuco. Você foi desmascarada no seu consultório e está sob a minha guarda. Vai sair daqui para responder pela falsa identidade e exercício de uma profissão sem a necessária habilitação profissional. – Ah, você está enganado. Eu tenho um laudo que atesta que sou bipolar com predomínio das fases de mania. Em crises não devo responder pelos meus atos. Qualquer advogado pode me soltar, como já ocorreu antes, meu caro investigador. Enquanto eu dialogava com Simone, que zombava de mim, o Dr. Hermenegildo volta ao recinto com a equipe de eletrochoqueterapia. Em poucos minutos, Simone estava imobilizada e pronta para o “tratamento”. Hermê, como era chamado no meio policial, usava a terapia como punição para os crimes de Simone, porque tinha certeza de que a justiça a liberaria prontamente. E até certo ponto, via alguma indicação nessa modalidade de tratamento que, sem dúvida, estaria sendo usada como um primeiro recurso, sem recorrer aos demais, menos invasivos e muito menos traumáticos. No dia seguinte providenciei toda a documentação para iniciar o processo contra a falsa psicóloga e, em menos de três dias, recebemos a ordem judicial para soltar a paciente em virtude de ser inimputável, conforme atestavam os laudos psiquiátricos que possuía. Deixei o hospital e o caso. Não havia nada mais a fazer. Voltei à rotina diária. Três meses depois, recebemos um ofício da delegacia de Palmas, no Tocantins, pedindo informações sobre uma psicóloga chamada Simone, Tânia, Sonia ou Tereza Bonfim que aparentemente estava promovendo o divórcio entre os casais que frequentavam a igreja presbiteriana local, através de aconselhamento mediante o emprego de hipnose.