Decio O. Elias
Aquele telefonema foi um marco em nossas vidas. É inacreditável; como pode alguém culto, trabalhador, simpático, alegre, portador de diploma universitário, tendo recebido uma educação privilegiada, num piscar de olhos, mudar os rumos da própria existência e a de toda uma família até então bem estruturada e feliz? Como pode alguém, assim, sem mais nem menos, deslizar pela rampa que leva ao abismo das drogas? Algumas vezes, ao caminhar pelas ruas de volta do trabalho, reconheço sua voz, antes clara e sonora, agora grave e rouca. Raramente o vejo, mas fico satisfeita quando isso acontece. Seu local preferido, onde deixa uma sacola com os poucos pertences, onde dorme e descansa, é a porta de uma loja de brinquedos. É lá que sempre o vejo, mas, não tive a coragem de falar com meu irmão na última vez que o vi. O outrora promissor residente de Anestesiologia deixou-se levar pelo ilusório mundo das drogas. Inteligente e culto, chegou a liderar uma verdadeira facção da cracolândia no centro da cidade. Depois da conversa do diretor do hospital com meu pai, soubemos que, por mais de uma vez, meu irmão fora encontrado desfalecido em uma sala de operações vazia, durante a noite do seu plantão, após consumir uma overdose de agentes anestésicos. O diretor comunicou o desligamento da residência médica, aconselhou a procura de tratamento especializado para meu irmão e colocou o hospital à disposição para o que fosse necessário. Por um tempo, não muito longo, meu irmão frequentou a clínica de tratamento e ouviu nossos apelos frequentes para abandonar o vício. Mas, infelizmente, foi tudo em vão. Rapidamente voltou a consumir drogas cada vez mais potentes. Sua imersão no universo da cocaína, sob todas as formas, foi muito rápida. Perdeu a residência médica e o amor próprio e, sem dizer nada, abandonou a família e saiu de casa sem olhar para trás. Situações muitas vezes desconhecidas geram tentações que batem à porta de todos nós, em algum momento das nossas vidas e fazem com que alguns sucumbam ao seu chamamento. E cai-se em desgraça. Eu o perdoei. No meu íntimo, o amor que sentia por ele era maior que a decepção deixada por sua escolha e, sobretudo, por sua ausência em nossas vidas. Lembro-me bem da noite em que vi um vulto do grupo de dependentes contorcer-se, gemendo e sussurrando palavras sem sentido. Assustada, afastei-me depressa. Na verdade eu não queria saber o que se passava, ou, mais claramente, não queria saber com quem aquilo se passava. A partir daquela noite não vi mais meu irmão no grupo costumeiro. Dias depois, com muita tristeza e uma saudade infinita, voltei à rua que meu irmão elegeu como moradia e abordei um dos seus assíduos frequentadores. Com o coração em aperto, perguntei por meu irmão. “Ele se foi”, ouvi de uma voz rude e pesada, terminando um diálogo que mal começara, sem definir com precisão o que queria dizer. A sacola já não estava na porta da loja de brinquedos. Nunca mais o vimos, ouvimos ou soubemos alguma coisa a seu respeito. Ele se foi. De verdade.