Era uma manhã chuvosa de inverno. Pouco depois das cinco horas da manhã. A cidade começava a despertar. As ruas ainda estavam semidesertas. O dia apenas iniciava. A temperatura estava abaixo dos quinze graus e ventava um pouco. Eunícia, como fazia diariamente, parou o carro naquele sinal vermelho. Cantarolava acompanhando as músicas que tocavam no rádio quando, subitamente, ouviu forte barulho de pancadas nos vidros laterais dianteiros do carro. Estava só no sinal ainda fechado e viu dois vultos exibindo armas e gesticulando ferozmente para que abrisse a porta e descesse do carro. Ao abrir a porta Eunícia foi brutalmente agarrada pelos cabelos e puxada para fora do carro; caiu sentada no asfalto. Em questão de segundos os dois entraram no carro e como o sinal abriu nesse intervalo, saíram rapidamente, cantando pneus. Abandonaram a cena do assalto deixando Eunícia ainda trêmula, sentada no chão da Av. das Américas, perto do BarraShopping. Os ladrões rumaram para a Av. Airton Senna e daí, sabe-se lá que rumos tomaram. Logo, logo, outro carro parou e o motorista, muito solícito, ajudou Eunícia a levantar do asfalto. Sua perna doía; mal conseguia balbuciar algumas palavras. Apenas conseguiu dizer: - Roubaram meu carro! Eunícia teve tonteiras e fraquejou as pernas que se dobraram. Romero, o motorista que parou para oferecer socorro, amparou Eunícia evitando que caísse e levou-a para a calçada. Em poucos segundos ela recuperou as forças e conseguiu falar melhor: - Eles tinham um olhar fixo, "vidrado", os olhos estavam avermelhados; pareciam drogados. Quase quebraram os vidros do carro. Achei melhor obedecer, mesmo com um medo terrível. Pareceu que minha hora havia chegado. Senti a morte de perto. Deus me ajudou! Nossa cidade está cada vez mais violenta. Agora a gente sai de casa sem saber se vai voltar. A insegurança e o medo tomaram conta das pessoas. Nunca pensei em chegar a esse estado de coisas. Eu não deveria ter saído de Floripa. Lá é o paraíso comparado com o Rio de Janeiro. E a polícia não consegue enfrentar o crime que ainda é desorganizado; eles brigam entre si. Quando estiverem organizados estaremos vivendo na nova Síria, ou sei lá onde! É o fim da linha ou o fundo do poço. - Romero acenava com a cabeça, concordando com tudo. Ajudava Eunícia a desabafar. Estava com pena dela. Ainda penalizado, Romero ofereceu-se para levar Eunícia a um hospital. Ela, contudo, preferiu voltar para casa e ele, homem de bem, fez questão de manter o oferecimento da carona. Levou Eunícia de volta à casa que não era longe do cruzamento onde ocorreu o assalto. Romero despediu-se e retomou seu rumo, enquanto Eunícia, ainda trêmula, abriu a porta e viu que a sala estava vazia. Achou que Silvino, seu marido, tinha voltado para a cama e dirigiu-se ao quarto sem fazer barulho. Para sua surpresa, ao abrir a porta deparou-se com uma cena totalmente inesperada e, mais que isso, insuspeitada. Silvino e Raquel, a irmã de sua vizinha, mulher jovem, bonita e divorciada, nus em sua cama, trocando carícias na mais calorosa cena de amor. Desesperada, Eunícia atirou a bolsa sobre os dois amantes e, em fúria, iniciou uma forte discussão com Raquel. - Sua prostituta, vadia, vagabunda! Prefere os maridos da vizinhança em vez de arranjar seus próprios homens. Por que isso? Grita Eunícia em pleno desespero. - Espere lá. Deixa de ser ciumenta sem razão. Não sou nenhuma vadia não senhora. Seu ex-marido me disse que vocês estavam separados, apenas moravam na mesma casa por razões de economia, mas cada um levava sua vida. Disse-me até que seu novo namorado se chama Ricardo e vocês estão muito bem. - Silvino, você disse isso a essa aventureira? Bradou Eunícia num tom choroso! - Meu amor, as coisas não são como parecem. Eu explico tudo, implora Silvino com lágrimas nos olhos. - Eunícia lembrou-se do revolver de Silvino. Abriu a gaveta da cômoda atrás da porta, pegou a arma e apontou para Silvino e a amante na cama. Aparentando uma calma que não existia, disse: - Se você explica tudo, pode começar. Princípio, meio e fim. Eu não vou trabalhar hoje, tenho o dia todo para ser convencida de que o que eu estou vendo não está acontecendo. Comece seu safado... Eu saio cedo de casa todo dia pra dar duro no trabalho e poupar você. Sustento sua vontade de escrever artigos que não vão nunca para o papel e você ao invés de buscar inspiração, busca aventuras às custas de depreciar a nossa união. Você é mais cretino do que sua irmã disse, quando decidimos viver juntos. Eu nunca deveria ter achado que iria regenerar você, seu pilantra. Silvino começa gaguejando e reticente: - Então, minha querida esposa! Logo, Eunícia o interrompe severamente: - Sem idiotices! Eu sei que isso é falsidade. Fale sério pelo menos uma vez na vida, já que você me enganou esse tempo todo. Com a sua conversinha de jornalista e escritor você me fez trabalhar para sustentar você e essas vadias que encontra pela rua. Agora Eunícia é interrompida por Raquel que protesta: - Alto lá; eu estou tão revoltada quanto você. O marginal de marido que você arranjou enganou a você e a mim também. Não se esqueça disso. E aponte esse revolver para o lado. Você me mete medo com essa arma. Ou melhor, aponte para o peito do Silvino. Ele merece levar um tiro. Atire nele, atire nele, atire logo, vamos... Curiosamente Eunícia percebe um tom de sinceridade nas palavras de Raquel e concorda com ela em que Silvino é o grande responsável pela crueldade e pela traição perpetradas a ambas, vítimas inocentes de um canalha. E continua, cada vez mais ameaçadoramente: - Acho que vou aceitar a sugestão e atirar logo em você, seu safado. Assim livro o mundo de mais um canalha, embora o mundo esteja cheio desses tipinhos falsos como você sempre foi. -Deixa eu explicar, minha cara Eunícia, por favor. Não me condene sem conhecer as minhas razões, disse Silvino com voz apagada e sem mostrar remorso. - Que razões? Que você precisa de várias mulheres pra ter inspiração para os artigos que moram na sua cabeça e nunca se mudam para o papel? Ainda por cima me fez comprar um computador caro. Aposto que usou para ver páginas pornográficas, em vez de escrever os artigos que imaginava. Nesse momento Raquel interrompe a discussão entre Eunícia e Silvino e, já com algum equilíbrio sugere: - Eunícia, já somos vizinhas há um bom tempo. Agora descobrimos que fomos enganadas pelo homem que sempre mentiu para você e, porque não, mentiu para mim também. Nós temos esse inimigo comum. Vamos nos livrar dele e assim podemos nos entender melhor. Podemos ser amigas. Não vale a pena atirar nesse crápula. Vai estragar a tua vida mais do que a dele, que já não vale nada. É melhor mandá-lo embora; ele vai ter que trabalhar para se manter e esse é o melhor castigo que podemos dar a gente dessa espécie. - Tem razão Raquel. Vamos nos livrar desse safado. E não diga que ele é meu ex-marido; nunca casei com esse traste. Apenas o abriguei em minha casa, graças a Deus. Agora é fácil me livrar dele. A porta da rua é a serventia da casa, seu pilantrão. E virando-se para Silvino: - Você, seu, seu..., seu tudo o que já dissemos. Pegue uma mala e leve apenas a sua roupa. Só a imprestável roupa que eu te dei. Nada mais. Tudo aqui nessa casa me pertence. Vaza daqui o mais depressa possível. Em meia hora eu quero você na rua com uma mala e mais nada. Leva cem reais para chegar na rodoviária e comprar uma passagem para bem longe daqui, de preferência para o inferno. Silvino em quinze minutos tem a mala com as roupas de uso diário e vai saindo pela porta da cozinha sem dizer uma palavra. Sai raspando e acena para o primeiro ônibus que passa pela rua. Parece que tudo o que quer é estar longe daquela arma, daquela casa e daquelas duas mulheres feridas. Raquel vira-se para Eunícia e pergunta: - Posso fazer um chá para nós? Temos algumas coisas para conversar e gostaria muito de fazer isso ainda hoje. Devo explicações a você, com certeza. - Vá em frente, Raquel. Prefiro camomila para o chá - diz Eunícia já um pouco mais tranquila. Após saborearem o chá, Raquel e Eunícia conversaram sobre como Silvino as tinha enganado, usando os lugares comuns dos homens sem caráter, sem respeito e até mesmo sem amor próprio, deixando de avaliar o mal que estava fazendo e o desconforto que estava criando à sua volta. Ao sentir que estavam próximas de derramar suas preciosas lágrimas, não por causa do safado, mas porque tinham elementos para suspeitar das suas atividades e não perceberam o caminho que as coisas tomaram, decidiram por uma pedra no assunto e combinaram um almoço para o dia seguinte. No almoço falaram sobre suas vidas, trabalho, aspirações, diversão, gosto musical, melhores boutiques, melhores restaurantes e tudo o mais que pode ser tema das conversas femininas, sem esquecer, é claro, as diversas combinações para a maquiagem perfeita com e sem o uso dos cílios postiços. Ficaram surpresas com a semelhança entre as duas. Raquel disse que tinha mais coisas em comum com Eunícia do que com sua irmã. Saíram do restaurante, visitaram algumas lojas, fizeram pequenas compras e voltaram para casa já como grandes amigas. Na semana seguinte voltaram a sair juntas, dessa vez para jantar. Conversaram animadamente antes e depois de saborear um fettuccine Alfredo na mais famosa "trattoria" do bairro e marcaram outro jantar para o sábado, dessa vez para saborear um filé de linguado ao vinho branco. Ao saírem do restaurante, Eunícia convidou Raquel para uma ligeira “saideira” em sua casa. Tinha separado uma garrafa de vinho tinto especial, que gostaria de saborear com a amiga. A noite foi se estendendo pela conversa já mais livre após a primeira garrafa de vinho e tornou-se mais interessante durante a segunda garrafa. Raquel acariciou a mão de Eunícia que, com um leve sorriso acariciou o rosto de Raquel. E seguindo as carícias, um beijo ardente selou um novo momento entre as novas amigas, agora prováveis amantes. Abraçadas no sofá da sala, experimentaram um maremoto de prazer indescritivelmente maior do que o orgasmo das relações heterossexuais que conheciam. E, após alguns dias, Rachel mudou-se para a casa de Eunícia, consolidando o relacionamento que satisfazia a ambas. Antes de me despedir, agora que eu já contei toda a história, queira me desculpar; preciso me apresentar a você. Sou Elisa, irmã de Raquel. Hospedei Raquel em minha casa após o seu tumultuado divórcio e dei todo o apoio de que precisava. Fiquei com pena do Silvino, pobre homem, sempre às voltas com os artigos que imagina, mas não coloca no papel nem no computador. Será algum bloqueio ou algum complexo? Enfim, considerando tudo o que passou, acho que todo mundo merece uma segunda chance. Ele me ligou à tarde convidando-me para jantar. Aceitei. Vamos jantar hoje à noite. Felipe, meu marido, adora futebol e não troca um jogo por nada. Não creio que vai se incomodar. Além disso, o nosso relacionamento anda tão desgastado que acredito ser chegado o momento de cada um cuidar da própria vida. E, sabe de uma coisa? Após o jogo dessa noite Felipe nem vai perguntar se eu jantei hoje.