VÓ FILOMENA E A CIGANA DA BULGÁRIA
Contos  |  Terça-feira, 12 Dezembro, 2023 18:46  |  Visitantes e Leitores: 11044  |  A+ | a-
Eram quatro horas da madrugada. O silêncio no casarão do Grajaú é subitamente interrompido por um lancinante grito vindo do quarto de Vó Filomena:
– Socorro!!! Dorinha, todo mundo, tenho coisas a dizer! Não demorem…
Toda a família acorda assustada e, com Dorinha à frente, chegam quase lutando pelo direito de atravessar a porta do quarto da matriarca Vó Filô. Encontram uma sorridente velhinha, sentada na beira da cama com um caderno de anotações na mão direita, ligeiramente trêmula como de costume. Vó Filô já os recebe com bom humor:
– Vocês não sabem da maior. Perdi o sono. Mas vocês vão ficar conhecendo a melhor história do ano! Só conto pra vocês, mesmo. E que isso fique entre nós apenas. Somente nós sete podemos saber disso, está bem? Vamos sentando…
Dorinha argumenta:
– Mas mãinha? Precisa ser agora? São quatro horas da madrugada. Boas histórias sempre começam enquanto eu sirvo o seu café! Vamos deixar para mais tarde?
– Não, não, não! Responde vó Filô com um tom de reprovação. – Tem que ser agora, porque são coisas que a memória pode apagar. E a família tem que estar a par de tudo o que acontece conosco, principalmente comigo.
Zezinho, sonolento, dá um muchocho, logo seguido pelos demais e contestado por vó Filomena.
– Muito bem. Zezinho está liberado porque cai de sono. Pode voltar pro quarto e dormir. A vó não liga, responde carinhosamente vó Filô. Os outros ficam. Podem sentar e prestar bastante atenção!
E vó Filomena assume os ares de quem vai fazer um pouco de mistério; algumas histórias são melhor apreciadas quando se acrescenta um pouco de “suspense” antes da principal revelação.
– Lembram daquela semana que eu fui passar na casa do tio Romualdo? Aquele da Ilha do Governador!. Pois bem; enganei todos vocês. Eu fui a outro lugar, um pouquinho mais longe. Fui ver minha amiga Alexieva, a cigana que sabe do passado, do presente e do futuro das pessoas. Fui à Bulgária; estive uns dias em Sofia e revi a cigana. Ela continua muito ligada nas coisas do mundo extrafísico. Só tio Alexandre sabe parte dessa história porque me levou até o aeroporto Tom Jobim, na Ilha do Governador. Portanto, fui realmente até a Ilha do Governador; só contei meia mentirinha! – continua vó Filô, com um sorriso mais amplo, dessa vez.
Dorinha assustada, interrompe:
– Mãinha, você foi tão longe e não disse nada a ninguém? Como pode ser isso? Eu sempre te acompanho a todo lugar.
– Não nas visitas às cartomantes, ciganas, bruxas e astrólogas! Tive que fazer cinco mapas astrais sem a tua companhia. Você não liga prá mim, Dorinha – lamenta vó Filô em tom meio choroso, como sempre faz, quando Dorinha a “repreende” por alguma coisa. Pura chantagem emocional!!! Coisas de gente idosa.
– Mãinha, em uma viagem grande assim, é claro que eu teria ido junto! Depois, quem não gosta de viajar? Eu amo conhecer outros países.
– Tá bem, tá bem; você ganhou. Da próxima vez não reclame; quero você junto comigo, de acordo? – pergunta vó Filô, mostrando arrependimento. - Além disso viajar sozinha é muito ruim; não é nada divertido - acrescenta em tom mais brando de voz.
– Claro, mãinha. Com a senhora eu vou a qualquer lugar; ainda mais em Sofia. Adoro ciganos! – responde Dorinha, sem muita convicção, mas o suficiente para acalmar vó Filô.
Uma vez terminados os preâmbulos, vó Filô dá continuação ao seu relato:
– Já sentada no avião, conheci um jornalista ainda jovem; sentou-se ao meu lado. Chama-se Júlio Prado. Escreve para uma revista feminina, “O Mundo da Mulher”. Li sua história incrível. Desmascarou a safada da Ilana Alexieva. É uma cigana bem mentirosa e deve mesmo ser uma “cigana de programa”. Não sei como conseguiu me enganar por tanto tempo, com suas visitas aos registros akáshicos.
– O que Filô? – pergunta Suzana, a irmã mais nova de vó Filomena, com ar de espanto.
– Registros akáshicos, – responde vó Filô com impaciência. São os registros existentes no plano astral e que guardam tudo o que acontece com as almas que vivem nesse nosso querido planeta. Alguns espiritualistas conseguem acessar esses registros e assim conhecer o passado, o presente e até mesmo o futuro das pessoas. Ilona faz a gente crer que tem essa faculdade; mas é pura charlatanice. A cigana Alexieva é uma impostora sem vergonha. Fiz bem em levar Júlio comigo. Qualquer rapaz bonito faz aquela cigana sair do sério. Não sei se ela vê o passado mas vê um bom futuro em cada homem bonito que aparece na sua frente. E eu gastei tanto dinheiro com essa periguete búlgara. Só eu mesmo… Ache… Pelas cartas do baralho cigano. Valha-me São Cipriano. Quase entrei pelo cano! Valha-me Santo Expedito, Fique longe de homem bonito!
Dorinha interrompe vó Filô e cobra:
– Mas mãinha, continue contando a história. Onde esse Júlio entra na tua história?
Vó Filô responde com rapidez:
– Eu já falei. Encontrei Júlio no avião. Fizemos amizade e eu o convidei a me acompanhar na visita à cigana Alexieva. Lá, ela armou uma ligação do Júlio para ela e convidou o meu amigo para voltar à noite, sozinho, claro. E aí foi o caos. Foi sexo pra todo lado. Júlio também é meio safado. Publicou essa história na revista. Graças a Deus eu dei a ele o meu nome falso. Me passei por Beatriz Guedes de Andrade. Beatriz, “a que traz felicidade”, “viajante” ou “peregrina”. A vó Bia do Leblon, melhor dizendo, da Ataulfo de Paiva. Deus me livre ver meu nome metido numa história de sexo explícito com um jornalista meio “pirado” e seu editor doidão. Nem pensar. Eu não gosto de me identificar para qualquer um, afinal, tenho um nome a zelar. O comendador trabalhou muito pra me deixar um bom nome e uma boa pensão, é claro! Aliás, lembrando o dedicado comendador, acho que justiça deve ser feita; que marido sovina, nem te falo. Uma vez pedi ao maridão que me desse um presente que durasse o ano inteiro. Depois de uma semana, o mazelado chegou em casa com um calendário. Voltando ao caso, esse Júlio Prado devia se chamar Júlio Pirado. Um simples i faz uma diferença danada.
Dorinha interrompe novamente e pede já meio aflita:
– Continua mãinha, continua. Ainda bem que você teve essa ideia de ser Beatriz. Serve de proteção às vezes, afe!
– Aí, essa é a história que eu queria contar a vocês. Fui buscar lã e saí tosquiada! Viram como tem molecagem em todo lugar? Os detalhes sórdidos vocês poderão ver na revista “O Mundo da Mulher”. Tem o artigo inteirinho, com chamada na capa e tudo. Escrito pelo safadinho do Júlio. Ainda bem que Júlio não sabe que eu sou a tal da Beatriz. Nem vai saber nunca. A revista tá aqui na mesinha da cabeceira. Quem quiser pode pegar!
Suzana pega a revista e sai. Os outros vão saindo um a um, até que sobra apenas Dorinha no quarto de vó Filô. Essa, querendo passar despercebida faz sinais para Dorinha ficar. Nesse momento, já a sós com a mãe, Dorinha pergunta, como quem já conhece a “peça”?
– Mãinha, essa coisa de falar a sós é boa, mas tem sempre uma história mais comprida. O que é que você escondeu de todo mundo?
– Até parece que você me conhece, minha filha. Eu sou de contar histórias? Comigo é no reco-reco, não sou nenhum boneco!!!
– Mãinha, diz logo o que tá querendo que eu saiba!
E vó Filô começa, meio sem jeito:
– Sabe filhota, velho às vezes inventa histórias, só pra chamar a atenção. Eu, pelo menos sou assim. Mas pra você eu não minto. Eu não fui a Bulgária coisa nenhuma. Eu li aquele conto que fala da Cigana Alexieva e gostei muito da história. Aí inventei que aconteceu comigo, mas é pura vontade de viver aquela aventura. A vó Bia do Leblon é outra pessoa; eu nem conheço, nunca ouvi falar. E pode até ser outra mentirosa. Eu passei a semana inteira na casa do tio Romualdo, na Ilha do Governador. Semaninha horrível, todo mundo chato e sem graça. Eu quero manter esse segredinho entre nós duas, está bem?
Dorinha, bem conhecendo sua mãe, acena com a cabeça em desaprovação, beija a testa de vó Filô e a ajuda a deitar. Puxa a coberta, apaga a luz do abajour e convida-a dormir. – Mãinha querida; nós todos já sonhamos muito. E no meio da madrugada Agora só precisamos dormir. Beijos. – E sai do quarto com o pensamento a mil por hora; “coisa de gente velha, inventou estar viva no artigo da revista. Ah mãinha, você é um amor, mas dá um trabalho”!
 
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