OS CAVALOS DA PM E O CAVALO DO PRETO VELHO!
Contos |
Sábado, 8 Maio, 2021
16:09
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Era um pequeno grupo e, talvez por isso, bastante unido. Luizinho, Carlos Henrique, Aymoré e Daniel. O quarteto da turma, as dores de cabeça de alguns professores e os pesadelos dos estudantes das outras turmas, sempre preocupados em evita-lo nas horas livres, antes e depois das aulas e nos recreios. Eram temidos por uns, invejados por poucos e esnobados pelos diversos colegas que usavam óculos de lentes espessas, as famosas “fundos de garrafa”, almofadinhas que chegavam ao colégio levados pelos motoristas das mamães e carregavam livros em vez de cachorro-quente e bananas. Luizinho era o malandrão meio destrambelhado; chutava caixas de sapatos na rua para só depois descobrir que havia tijolos dentro delas e, invariavelmente, colecionava dedos e mais dedos imobilizados ou engessados. Aymoré, o filhinho da mamãe, era o bamba do futebol de botões; ganhava a maioria dos jogos e campeonatos, mesmo quando algum do grupo anulava seus gols legítimos. Carlos Henrique era o mais estudioso e aplicado do grupinho, além de bom desenhista à mão livre. Ilustrava os artigos e caricaturava as notícias do jornalzinho do colégio. Às vezes parecia meio maníaco. Mas não depressivo. Simplesmente maníaco, talvez em sua busca permanente pela perfeição. Era o mais cerebral do grupo e, portanto, o alvo preferido das molecagens dos demais. Daniel, como os outros três, era da turma do meio; quer dizer, não andava entre os “top ten” nem estava entre os dez piores; flutuava ali no meio da turma, odiando física e matemática e estudando muita biologia. Na adolescência tardia, final do antigo curso científico, adoravam as aulas práticas de biologia que algumas meninas do colégio “ofereciam”, sem custo maior do que um sorvete ou um cineminha. O escurinho do cinema ajudava muito a conhecer melhor as regiões mais ocultas da anatomia, não raro com a cumplicidade dos “lanterninhas” que faziam questão de ficar longe dos assentos da última fileira. Eram intermináveis e adoráveis matinês, nas quais o que menos interessava era o filme em exibição.
Final do terceiro ano do curso científico (ensino médio, antigo segundo grau) e se deram conta de que nunca fizeram “gazetas”. Como iriam terminar o científico sem ter “gazeteado” algumas vezes? O que teriam para contar aos filhos e netos? Decidiram programar algumas. A primeira escolha era a Quinta da Boa Vista, em São Cristóvão. Local aprazível, amplo e cheio de oportunidades de diversão sem custo. A primeira e magistral aventura foi nadar no laguinho da Quinta, de águas sujas, mas atraentes para os garotos irresponsáveis dos colégios do subúrbio. E lá foram os quatro novos gazeteiros. Deixaram as roupas arrumadinhas na beira do lago e, em seguida, mergulharam, os quatro só de cuecas. Qual não foi a grande surpresa quando, após algumas braçadas, olharam para as roupas e, assustados, com os olhos esbugalhados, viram dois PMs montados em “gigantescos” cavalos, cujas patas prendiam e, certamente, sujavam suas roupas com marcas das ferraduras. Pacientemente, os policiais esperavam por eles. Chegaram a falar em fugir correndo, mas sem roupas? Como iriam tomar o bonde de volta a casa ou à escola, vestidos só de cuecas molhadas que, então descobriram, ficavam bastante transparentes?
Foi, sem dúvida, uma das caminhadas mais longas que já fizeram na vida. Os cem metros que os separavam das roupas, ou melhor, das patas dos cavalos cada vez maiores, permitiram pensar em tudo o que não queriam, incluindo falar com o severo, realmente durão, diretor do colégio. A primeira frase que ouviram foi devastadora: – Os quatro para a delegacia! Parecia uma sentença final, sem apelação possível ou alternativa viável. Pela primeira vez, perderam a antiga sincronia; choravam, cada um em seu próprio ritmo, timbre e tom. Desafinaram de verdade. Por minutos que pareciam dias. Até olharem para o rosto do soldado mais velho e perceberem um leve sorriso no canto da sua boca. Nunca um ar de riso fez tão bem aos corações que, tinham certeza, teimavam em fugir pelas bocas, tal a força e a velocidade com que batiam. O PM continuou o seu discurso: – São quatro moleques, sem vergonhas e safados. Não quero ouvir nem um pio. Suas mães estão em casa, suas professoras estão na escola que é onde vocês deveriam estar e vocês estão aqui, se arriscando a pegar doenças nessa água suja e preferindo serem presos! Acho que vou levar os quatro “em cana” e esperar o diretor do colégio vir buscá-los! O estatuto de proteção do menor – que fez tanta falta nessa hora – estava muitos anos à frente. Simplesmente ainda não tinha sido pensado; muito menos escrito. O choro e desespero, parece, comoveram os dois soldados. – Foi a primeira vez, senhor policial! Nunca fizemos isso na vida e não vamos fazer mais, disse Luizinho, o primeiro a conseguir emitir algum som, sem tremer o corpo inteiro. Não deu certo. Ouviram de volta: – Eu disse nem um pio. Todo dia tem moleque vadio aqui, fugindo da escola. Não quero saber se é o primeiro ou segundo. Tenho certeza de que é o último!
Como se falassem com Deus, de joelhos, pediram desculpas, perdão, apelaram para o coração dos soldados, para os santos de devoção, descreveram a “fera” que dirigia o colégio. Finalmente, a ação libertadora: – – Está bem; chega de choramingar. Só são machos pra fazer gazeta. Agora parecem meninas de colégio, os quatro. Vocês têm cinco minutos para vestir os uniformes e desaparecer da nossa frente. Voltem pra escola e contem ao diretor o que fizeram. E não quero encontrar nenhum dos quatro na minha frente enquanto eu for policial, disse o outro soldado, sem mesmo nos dirigir o olhar. Parecia um discurso ensaiado; provavelmente ria muito por dentro, mas certamente foi muito claro, sincero, contundente e, principalmente, eficaz.
A chegada em casa foi como o retorno ao colo materno. Beijos e a desculpa de sempre. “Sujei a camisa no recreio, jogando bola com os amigos. Fiz um gol hoje”. A camisa já amassada e esfregada tinha espalhado a sujeira; já não tinha o desenho da ferradura.
Pouco mais de duas horas após chegar em casa e com o coração já de volta ao centro do peito, Daniel ouve a voz de sua mãe, modulada pela conhecida voz dele, o Preto Velho Pai Miguel. – Chega cá meu menino travesso! “Vamu ter uma cunversinha séria!” A bronca foi mais assustadora do que a dos PMs. “Cê foi safadinho hoje, né meu fio! Fugiu da escola prá farrear com os outros moleques, enganando o “meu cavalo”, enganando sua mãe, seu sem vergonha. Isso se faz? Isso tá certo? Fique ocê sabenu que preto véio tá de olho em ocê. Eu não vou deixar ela saber isso, só dessa vez. Se fizer de novo eu mesmo vou contar. E oia só, eu to sabeno de tudo que você faz na rua, viu? Eu sei de tudo! E foi preto véio que ajudou os puliça a mandar ocês prá casa. Ocês num merecia não, mas preto veio toma conta de ocê e vai botar ocê nus eixo.
Foi simplesmente horripilante. Nem Daniel, nem seus amigos falaram nada com ninguém a respeito da malfadada gazeta. E o velho Pai Miguel sabia de tudo. De tudo e muito mais. Desde esse dia, cada vez que Daniel tinha vontade de fazer qualquer coisa, lembrava da vigilância de Pai Miguel. Aos poucos, foi se acostumando com a ideia. Em pouco tempo aprendeu a pedir a sua ajuda para as decisões que pareciam mais complicadas. Daniel levou algum tempo para perceber que aquele dia marcara o seu primeiro encontro com o fenômeno mediúnico. Através de sua mãe, incorporando aquele preto velho com quem fez amizade duradoura. Foi seu guardião e conselheiro no subúrbio em que viveu em contato com marginais, traficantes e assaltantes, com os quais jogava bola à tarde e desfrutava da sua proteção à noite, ao voltar para casa.
Muitas outras vezes conversou com Pai Miguel, que cuidou dele como um filho e a quem sempre buscou nos momentos que pareceram mais aflitivos. Mesmo naqueles “enormes” problemas de gente jovem. Hoje, já um estudante da doutrina espírita, Daniel é muito grato à sua valiosa e infalível proteção. E, certamente, ao modo pelo qual sua mãe ensinou-lhe as coisas de Umbanda, do jeito que sabia, na prática da mediunidade, fazendo caridade com a presença do inesquecível Pai Miguel. Hoje, aos 98 anos, fisicamente saudável, mas com grande perda da memória, fruto do Mal de Alzheimer, certamente tem em Pai Miguel um fiel amigo e protetor a quem sempre serviu com muito amor.
Essas reminiscências de alguns momentos especiais da adolescência mostram que há numerosos caminhos para conhecer a mediunidade. Alguns podem ser espinhosos. Mas, em geral, não são. Outros parecem até mesmo dramáticos, mas não são nada mais do que momentos que a memória guarda e que foram mais divertidos do que pareceram.
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