Fazia parte do nosso cotidiano. Eu e meu pai saíamos pela manhã, caminhávamos cerca de uns setecentos metros até a casa da vovó. Passávamos, um pouco antes, pelo curral das vacas, ele apanhava o leite e eu seguia um pouco mais, atravessava a estrada de rodagem e descia uma pequena ladeira até chegar à casa da fazenda, onde eu passava o dia, somente voltando à tarde para dormir na nossa casa.
O curral das vacas era um cercado de réguas fortes e ali o campeiro ou tirador do leite fazia a ordenha todas as manhãs. Do lado de fora havia um grande cercado também de réguas ou de arame farpado onde as vacas, que por instinto ou por condicionamento, esperavam desde cedo ser chamadas pelo nome e entravam no local para a ordenha. No momento em que ouvia o nome ou identificava o berro, o bezerro já se punha também a berrar e procurar aproximar-se do portão para entrar e mamar o leite que deveria ser todo seu. Incrível!
Os campeiros deixam-no chupar um pouco. É para soltar o leite e encher rápido o buchinho da sua cria e é bonito de se ver. Dá umas cabeçadas no úbere da vaca e põe-se a sugar. Hoje eu acho que pela sucção ele estimula terminações nervosas que chegam ao hipotálamo e a hipófise secreta algumas substâncias químicas que atuam, provavelmente, sobre esfíncteres dos músculos lisos e liberam o leite. Droga, droga, droga! Pra que eu fui aprender isso? Acabou todo o lirismo da cena de um bezerrinho mamando e o panaca aqui com pensamentos materialistas de fisiologia! Droga! Eu não precisava saber disso!
Depois de pouco tempo, o campeiro retira o bezerro, amarra-o com o rabo e as pernas da vaca e se põe a ordenhar. Sempre deixa um pouco para o filhote que depois é solto para o pasto. Lá as vacas vão comer capim. Verdadeiras "micro usinas" de transformação de proteínas vegetais em proteínas animais. Fornecem leite para laticínios e carne. Nós, humanos, que não somos bobos nem nada, comemos a carne os derivados do leite e também alfaces, repolhos, tomates…. Eh! Eh! Eh!
Lá pelas onze horas, todos juntos, vacas e bezerros, no curral de novo e são apartados. As vacas para um pasto grande, bezerros maiores para um pasto menor e os pequenininhos que só mamam permanecem no curral até a manhã seguinte. E o ciclo se repete.
O campeiro era o Luiz Lucas, um negro alto, forte, mas não me lembro da cara dele. Eu tinha um medo danado do Luiz. Quando eu passava pelo curral não olhava para dentro da sala de ordenha, a não ser bem de longe e meio agachado olhando por entre as réguas. Se ele olhasse na minha direção, eu virava rapidamente a cabeça para o outro lado. Tinha mais medo dele do que da vaca Nubrina que gostava de correr atrás das crianças e cachorro, mesmo sem ter bezerro novo. Eu subia nas réguas do curral ou vazava rápido debaixo das cercas, mas como se livrar do Luiz?
Diziam que ele era macumbeiro e batia o canjerê. As pessoas levavam algum dinheiro ou mantimentos e encomendava um trabalho. Se ele batesse canjerê para alguém, essa pessoa não morreria logo, logo, não, mas ficava jurada, marcada. Por exemplo: beber leite e comer manga fazia mal, acreditava-se. Você podia beber leite de manhã, almoçar para a comida separar o leite e depois chupar manga por cima do almoço, não tinha importância nenhuma, mas se ele batesse o canjerê, você morreria, mesmo separando o leite da manga com a comida.
Morava perto da casa do compadre Demétrio e lá existia um cajueiro enorme. Eu torrava de vontade de comer caju, mas não ia lá buscar. Nem amarrado! Deus me livre! E se ele tivesse batido canjerê para quem apanhasse os cajus?
Meu pai era um incrédulo e um dia cismou desmascarar os conhecimentos da bruxaria do Luiz Lucas. Na venda do meu tio, à noite, casa cheia, pegou uma folha de papel almaço, um lápis daqueles que de um lado é vermelho e do outro azul, rabiscou um monte de sinais, cruz, fez uma porção de “cinco salomão”. Pintou e bordou! Depois, apanhou uma vela, caixa de fósforos, umas moedinhas e colocou tudo na banca onde estavam os latões para colocar o leite. Todo mundo sabia do trote, menos o Luiz.
Pela manhã ele lá estava encostado do outro lado do curral, cara feia, muito preocupado e disse que não ia tirar o leite porque havia ali um trabalho muito forte contra ele. Meu pai se dirigiu ao local, pegou a vela, acendeu, tacou fogo no papel e depois colocou o que restou no bolso, inclusive as suas moedas, sob o olhar apavorado e imbecilizado do Luiz.
– Agora pode ir pra lá que eu já desfiz o trabalho!