Estou aposentado. Eu vivi a maior parte da minha vida adulta no longínquo município de Taquarica dos Montões, num Estado do Norte do País. Antes de contar algumas histórias escabrosas ocorridas naquele município, deixe-me esclarecer algumas coisas. Eu fui o padre encarregado da paróquia da cidade por trinta e oito anos. Algumas das coisas que vou contar foram obtidas das confissões que ouvi na igreja e, portanto, fazem parte da proteção conferida pelo direito canônico. Em relação ao sigilo dos sacramentos – o sigilo sacramental – os documentos da igreja afirmam: “O sigilo sacramental é inviolável e, portanto, é absolutamente ilícito ao confessor, de alguma forma, trair o penitente por palavras ou de qualquer outro modo e por qualquer que seja a causa”. Por essa razão, e apenas por ela, todos os nomes, sejam de locais ou de pessoas envolvidas foram trocados. Assim, preservamos o necessário sacro segredo, a minha responsabilidade eclesiástica e as pessoas envolvidas. Em verdade, tudo o que importa são os fatos e não os nomes dos lugares onde ocorreram; muito menos os nomes das pessoas que os produziram. Os fatos, esses sim, são da maior importância e merecem a avaliação mais precisa possível. O ilustre e saudoso deputado Ulisses Guimarães foi um ardoroso usuário e defensor da expressão “Sua Excelência, o Fato”, quando se referia a alguma coisa absolutamente verdadeira e irrefutável. Ainda que pelo fenômeno da verossimilhança, os fatos dessa narrativa possam ser apenas criações imaginadas pelo autor, ou mais precisamente, por quem narra a história – nesse caso eu mesmo – fatos são fatos e contra fatos não há argumentos. Para proteger a minha própria identidade, peço a todos, inclusive ao autor, para ser chamado de padre Joaquim Matias, um homem que nunca existiu, mas que em meu lugar, tem muita coisa importante para dizer, inclusive a meu respeito. Mas isso é outra história; não pretendo fazer nenhuma autobiografia. Meus fiéis mais próximos, depois de algum tempo de convívio, passaram a me chamar de padre Jô. Isso me deixava feliz. Ter os paroquianos sentindo-se mais próximos. Ajudou bastante no aconselhamento dos adultos e na evangelização das crianças. Acho que algumas coisas nas histórias – ou deveria dizer “estórias”? – devem ser mais detalhadas, com o objetivo de proporcionar a quem as lê, informações que não fiquem martelando em sua mente, como interrogações sem respostas, durante a leitura. Por exemplo, falei de município de Taquarica dos Montões. Será que a cidade em que eu vivi tem o mesmo nome? Há diferenças entre cidades e municípios? Acho que podemos pegar isso, como um bom ponto de partida; afinal, nem todo mundo costume se interessar por esses conceitos. Município e cidade são palavras distintas que designam aspectos diferentes de um mesmo território. O termo cidade refere-se ao espaço urbano de um município. Por município, entendemos o espaço territorial político dentro de um estado ou território. Um município pode abrigar mais de uma cidade. Taquarica dos Montões abriga apenas uma cidade que, desde sempre, tem o mesmo nome do município, mas que é conhecida pelos seus habitantes apenas por Taquarica. Talvez por iniciativa dos políticos, para diferenciar entre a cidade e o município, como saber? Lembro-me bem da minha chegada à cidade de Taquarica, aos vinte e cinco anos de idade, para ocupar o lugar deixado pelo saudoso padre Zacarias, falecido aos noventa e dois anos de idade, ainda lúcido e capaz de dizer a missa dominical sem nenhum lapso de memória e sem aparentar cansaço. Deixou grande comoção na cidade. Custou-se muito a encontrar um substituto. Eu fui voluntário na arquidiocese, para ser enviado a Taquarica. Eu queria ser um pároco muito próximo dos fiéis, confessor e conselheiro nos seus problemas e dificuldades, pastor das almas sem rumo, um criador de seguidores de Jesus e filhos de Deus. Com muito entusiasmo, abracei a oportunidade surgida. Minha chegada foi cercada de alguma surpresa e, certamente, bastante suspeição, por parte dos habitantes mais antigos da cidade. Estavam todos acostumados com o padre Zacarias, idoso, compreensivo, criador de costumes próprios que nem sempre eram ditados pela diocese, mas atendiam as necessidades locais. Eu, jovem de vinte e cinco anos, recém-ordenado e enviado a tão longínquo rincão, parecia ter sido escolhido por punição mais do que por voluntariado. Custei a mudar a opinião geral a meu respeito. Apenas consegui isso quando, na ausência do médico da cidade, tive que fazer um parto que, graças ao bom Deus, trouxe à luz um esbelto e sadio menino que, mais tarde, seria o meu auxiliar na igreja. Seu nome de batismo é Euzébio e, pelas tarefas que desempenhava, posso dizer que foi realmente o meu sacristão. Em pouco tempo Euzébio tornou-se indispensável e grande amigo, meu e dos meus amigos. Após o nascimento de Euzébio, filho de uma penitente contumaz da nossa igreja, minha vida mudou da água para o vinho, como se diz comumente nas cidades pequenas. Passei a ser respeitado, como a pessoa capaz de fazer qualquer coisa; não apenas um padre. Fiquei com o prestígio em alta, não tanto quanto o padre Zacarias; isso só aconteceu depois dos primeiros dez anos de sacerdócio. Apesar de tudo, devo dizer que sou imensamente grato ao Dr. Joventino Lucas, apesar de nunca ter comentado isso com ele, por ter viajado na época em que a mãe de Euzébio estava com a gravidez praticamente a termo. Aquele parto foi o meu passaporte para o altar de Taquarica. Logo, logo, como é comum nas cidades do interior, o trio de autoridades ficou formado pelo delegado, o médico e o padre, não necessariamente nessa ordem. Seguiam-se o prefeito e os vereadores. Taquarica tinha cinco vereadores. Todos corruptos, quase tanto como o prefeito e o delegado, como veremos ao longo dessa narrativa. Apesar de ter quase 8.000 habitantes, a lei orgânica do município estabelece que devam ser eleitos apenas cinco vereadores, de acordo com as disponibilidades orçamentárias. Uma das campanhas do maior corrupto de Taquarica, o prefeito Marcelino de Almeida, era voltada a criar mais três vagas de vereadores, como a Constituição Federal permite. Mas, a opinião do povo da cidade é a de que não desejam ter mais vereadores do que os que já elegem com grandes dificuldades financeiras. Uma coisa que me impressionou bastante foi o fato de que quinze partidos tinham diretórios ativos em Taquarica dos Montões, mas apenas três elegiam vereadores e prefeitos. Aliás, o cargo de prefeito parecia ser hereditário, pois era sistematicamente ocupado pelos membros da família Almeida, agricultores desde a criação do município e amigos da maioria dos habitantes. Esses, pobres coitados, como em qualquer cidade brasileira de qualquer tamanho, conheciam apenas o exterior das pessoas públicas, principalmente, os prefeitos. O médico e o padre e, às vezes o delegado, conheciam os prefeitos na sua intimidade. E, confesso, nenhum deles valia nada. Tal qual na vida real de quase todo município do território brasileiro. Os políticos, seja em Recife, São Paulo ou Taquarica, são todos iguais. Sempre iguais e com as mesmas ideias. E uma única solução para todos os problemas e dificuldades que, em geral, eles mesmos criam: aumento dos impostos. Sobre qualquer coisa. Ainda bem que as hóstias são isentas de impostos. A insistência do prefeito Marcelino em aumentar o número de vereadores prende-se ao inconfessável desejo de eleger sua mulher e dois filhos para a câmara municipal, daí a pretensão de aumentar em três vagas. O delegado, mais ladino que o prefeito, conseguiu o cargo por nomeação direta, depois de uma manobra que, nos dias atuais, está muito em uso classificar como “pouco republicana”. Inspirado por um cirurgião plástico do interior contratou uma garota de programa de muito boa aparência. Sem medo de errar, posso dizer que era uma mulher lindíssima, cujo trabalho devia custar bem caro. Hospedou-a em sua casa e apresentou ao prefeito como sendo sua prima distante, moradora de Copacabana, no Rio de Janeiro, que estava de visita ao município de Taquarica dos Montões. Já na apresentação, conforme acertado, Dolores, esse é seu nome, se insinuou como ardorosa fã de autoridades assim como o prefeito Marcelino. Esse, por seu turno, ao se ver diante de tão rara beldade, inexistente por aquelas bandas, é bom que se ressalte, mais do que derreteu-se como sorvete no verão do agreste. Não foram necessários mais do que dois ou três encontros, todos “muito casuais” para que Dolores dissesse ao prefeito o quanto o admirava e como gostaria de conhecê-lo melhor. Logo surgiu o convite para conhecer a fazenda produtora do melhor leite do município e que, às vezes, negociava para a capital do estado, quando a venda do leite perdia a competição para o fabrico de queijo. Dolores disse que tinha um grande desejo de conhecer a produção de leite, ainda mais em tão especial companhia. E lá foi o prefeito Marcelino cheio de ideias “pouco republicanas” ciceroneando Dolores pelas estradas de Taquarica, até embrenhar-se pelas fazendas do interior. Decidiu parar para um breve descanso à beira da estrada deserta, sob a frondosa mangueira centenária que provia convidativa sombra e frescor aos visitantes. Dentro de poucos minutos de conversa meio vazia, Dolores disse que simpatizara muito com o prefeito e queria aproveitar aquele momento para guardar uma recordação perene de sua visita a Taquarica. Muito rapidamente, Dolores abraçou e beijou o prefeito, despertando nele certos sentimentos já parcialmente nublados pelo tempo. Dolores, profissional esmerada, mostrou a Marcelino, com quantos paus se faz uma canoa. Após meia hora, o prefeito confessou sua paixão à primeira vista. Queria Dolores por perto, de qualquer maneira. Recebeu a promessa de que ela viria visitar a cidade com frequência, mas para isso, seria necessário que seu primo ocupasse um cargo de relevo para servir de razão às visitas mais frequentes. Dolores, conforme o combinado sugeriu que seu primo, pelo treinamento como sargento do exército, daria um bom delegado, especialmente, porque se tratava de uma cidade pacata e ela ficaria muito grata por esse pequeno favor que, junto com Marcelino, prestava a seu primo querido. Favores sexuais são um grande trunfo junto a certos políticos do interior. E também os das capitais, ora bolas. Assim, o delegado Quirino assumiu suas funções no serviço público de Taquarica dos Montões. Não por acaso, eram ambos, Quirino e Marcelino, membros do mesmo partido político. E, confiante, o delegado marcou logo outra visita de sua “prima” para dali a três meses, convidada a participar da inauguração das novas instalações da delegacia local, cujas obras, na verdade custariam bastante dinheiro, porque o construtor a ser contratado, amigo do delegado, não esqueceria dos 5% de taxa de concessão, vulgarmente conhecida como “propina” ou “pixuleco”. O mais importante seria mandar metade da propina ao diretório estadual do partido, o que garantiria Quirino como delegado enquanto desejasse “servir ao povo do município”. Quem me contou essa aventura sórdida foi Josefa, a mulher do delegado, encarregada pelo marido de levar a prima até a rodoviária e fazer o pagamento pelos “serviços prestados”. Foram trinta mil reais por 6 dias de trabalho. Serviços caros, porque incluíam a viagem e o abandono dos clientes cativos de Copacabana. Mas valeu a pena para todos os envolvidos, menos Josefa, segundo ela mesma, mulher ciumenta e desconfiada do parentesco distante de Quirino. Mas, a prefeitura iria ajudar no pagamento das despesas, de uma ou de outra forma. Para comprometer Marcelino com sua causa, Quirino mostrou o quanto sabia:Caro amigo, ilustre prefeito. Minha prima confessou-me em particular, claro, o quanto gostou de sua companhia. Certamente leva uma ótima impressão do nosso município e da produção leiteira. Ela se confessa muito fogosa, mas disse ainda em sigilo absoluto, o quanto é raro encontrar tanta virilidade em alguém com cargos públicos. Meus parabéns, amigo. Que isso fique apenas entre nós.
Ora meu nobre delegado. São coisas que acontecem. Ela é realmente fogosa e cativante. Foram momentos inesquecíveis. Quando ela volta?
Quando o amigo quiser. Claro que isso pode implicar em certas concessões à delegacia. Mas, o que será isso diante de tanto prazer, não é mesmo?
Claro, claro. Vamos fazer as obras necessárias. O mais rápido possível. Há verbas disponíveis; afinal a creche pode esperar o próximo exercício e o posto de saúde não é tão prioritário como a delegacia, para a segurança dos munícipes. Até certo ponto, o cretino do prefeito, tão calhorda quanto o delegado, galhofava com sua avaliação das prioridades do município. Ambos sabiam que o último furto havia ocorrido quando padre Zacarias ainda era o pároco da cidade e perdoou o ladrão, sob a promessa de não mais voltar ao município. E à época, prefeito e delegado, apenas souberam do caso e seus detalhes após alguns meses, em conversa contada pelo próprio padre ao elogiar a tranquilidade da vida em Taquarica. Assim era o padre Zacarias. Tinha soluções para todos os problemas que aparecessem, inclusive faltas de luz ou gás. O Dr. Joventino Lucas era um bom homem. Está aposentado como eu e também se mudou para a capital. Vez por outra jantamos juntos, tomamos nosso vinhozinho e conversamos sobre os velhos tempos em Taquarica. Um sério problema é que, como homem de ciência, Joventino nem sempre era temente a Deus. Meio católico, meio ateu, quando as coisas não andavam como queria blasfemava, como se Deus tivesse cometido algum erro ou engano nos planos para o mundo. Eu sempre desconfiei que o doutor foi “consultado” pela prima do delegado. Afinal, Quirino fazia qualquer coisa para ter todo mundo na palma da sua mão. Nesse aspecto, até lembra um famoso deputado que a operação Lava-jato encarcerou em Curitiba. Homem de ação, diga-se de passagem. Cheio de contas na Suíça, cujo “usufruto” detinha, na maior cara de pau. Mas voltando ao Dr. Lucas; era um indivíduo muito esperto e confiável. Bom médico, sabia a dose certa para cada cidadão do município. Conhecia bem seus limites e suas limitações. Tinha o bom senso de enviar para a capital os pacientes mais graves e os problemas mais sérios e, com isso, ganhara a confiança de todos. Tivemos nossos dias de abusar do vinho; nesses dias a conversa era mais franca e direta:
Meu caro doutor, disse-lhe uma vez, há vozes que dizem que Dolores, a prima do delegado, precisou de seus serviços profissionais e ofereceu em troca serviços nem tão profissionais assim! No caso de procederem tais afirmações, o amigo merece meus cumprimentos.
Padre, respondeu o sem vergonha, sempre achei dona Dolores a mulher mais linda que já vi. Mas ficamos só nisso. Isso era assunto sigiloso da prefeitura e ninguém deveria violar, acrescentou sorridente. Eu também ouvi dizer que ela adorava uma confissãozinha; é verdade? Era sempre perdoada? E qual era a penitência mais comum?, arrematou o safado com um ar de deboche.
Ah, meu filho. Dona Dolores era moça refinada, mas nunca ia à igreja. Trabalhava bastante sob a orientação do seu priminho, o delegado. Esse sim, era o mentor e usufrutuário mor, segundo as vozes. Quem falava mais frequentemente era Dona Josefa, essa sim, que por ciúmes do delegado não saia do meu confessionário. Devo até confessar que uma ou outra vez procurou ser mais do que uma penitente. Eu quase caio em desgraça, mas, com a ajuda de meus santos protetores consegui manter a castidade.
Qual é, padre Jô. Não venha com essa conversa de amador. Josefa também se despia no meu consultório. E sem estar doente. E confessava os pecados que não podia confessar a você, caro pastor de almas impuras! E nem estou falando da mãe do Euzébio, que não saia da casa do padre. Todo mundo na cidade suspeitava do que eu tenho certeza. Ela até arrumava a sua cama, padre Jô. E, segundo consta, principalmente, ela desarrumava a cama também, não é meu pároco velhaco!
– Meu doutorzinho do interior; quem faz as fofocas na cidade pequena são as beatas e as lavadeiras. Os médicos apenas consultam os doentes. Mas não as primas dos delegados, seu safado de uma figa – disse, rindo quase sem conseguir parar, num tom de quem aceita o que foi dito. E, temendo a piora das acusações, com alguns bons momentos na memória, resolvi mudar de assunto e encher os copos de vinho novamente. Seria melhor mais vinho do que mais revelações; afinal eu era o padre da paróquia e não é de bom tom recordar dos próprios pecados lembrados por amigos (ou seriam testemunhas?)! Agora alguns fatos fora da rotina são conhecidos. O prefeito, o médico, o delegado e os vereadores de Taquarica dos Montões eram todos corruptos. O padre também!
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