PAZ
Crônicas  |  Segunda-feira, 10 Janeiro, 2022 12:44  |  Visitantes e Leitores: 1442  |  A+ | a-
Dr. Dirceu Badini

Final de ano, início de novo ano. E com isto, mensagens e mais mensagens e palavras com lugar cativo, como paz. Um exemplo.
Sentei-me diante do micro e resolvi escrever algo sobre ela. Dificílimo! É algo muito individual, abstrato, inexplicável… Senti isso!
O que pode ser paz para um pode ser um inferno para outro caminhante ao lado. Entendi não ter a necessária capacidade intelectual ou ainda não me considerar um vivente em completa paz para falar dela. Mesmo assim, teimei em ficar ali por algum tempo mais fixando o monitor e espremendo o meu cérebro na esperança de brotar alguma coisa útil. Nada!
Uso como protetor de tela uma sequência de fotos. Todas lindas no meu julgamento. Algumas são minhas, outras surripiadas. Elas transitam por ali com espaço de alguns segundos e eu então arredo a minha cadeira para trás, enlaço as duas mãos por trás da cabeça e fico com olhar perdido em tudo aquilo. Tempo e imagens passam… Imagens passam.
A natureza é pródiga em belezas, mas os fotógrafos também o são quando sabem escolher o barato daquele pequenino espaço de uma farta amostra à sua frente, disponível e sem nenhuma atração para a maioria dos observadores. Sensibilidade. Poucos a têm de presente. Amém!
Uma das telas despertou demais a minha atenção. Era uma foto de um homem e seu barco, estáticos e posicionados num enquadramento perfeito sob o ponto de vista ortodoxo aos princípios da composição.
O quadro era monocromático. A cena foi tomada em contra sol já esmaecido e a tonalidade à mercê de estar ou não iluminada diretamente. Toda em amarelo-ouro, variando a densidade nos contrafortes e perfis dos morros que penetravam pela esquerda. Deles somente se percebiam fiapos de vegetações na crista da linha descendente acariciando o horizonte.
Fiquei por ali uns segundos que me pareceram muito longos, o tempo travara. Do barco somente percebia a silhueta do pescador, magro e curvado, me incutindo a sensação de já ter sido castigado pelo tempo. O reflexo no espelho da água do conjunto era a única porção enegrecida daquela exposição.
Numa fração de tempo não avaliada eu me senti fazendo parte daquela cena. Alguma coisa obrigava a inteirar-me com a figura do velho pescador e com todo aquele ambiente. Eu estava ou estive ali presente, com certeza. 
Pés descalços e atolados na parte úmida da margem. Lama entre os dedos. Calças curtas acima dos joelhos. Cabelos desgrenhados. Barbante pendurado no pescoço sustentando imagens de santos e a camisa de riscado abotoada com num só botão e na casa errada. Enviesada. 
Por um curto instante tudo me parecia ter movimento e vida, mas diferente, estranho. A luz amarelada assemelhava a um nevoeiro maciço de purpurinas douradas que não se conseguia deter. Diáfanas, fugitivas ágeis por entre os dedos.
O velho pescador executava movimentos lentos, sempre lentos. Iscou o seu anzol. Desistiu de afundá-lo na água à espera de uma puxada brusca do lambari sagaz e ladrão ou a forte e persistente arrastada para o fundo de um piau vermelho ou de uma piapara matreira.
Olhei para a direita: poente. Rapidamente aquela rodela de amarelo em fogaréu se despencou célere para os precipícios além do horizonte. O sol era ali o único apressado. Não escurecia; a névoa amarelada se tornava mais densa. Só mais densa.
Voltando o olhar para o barco, notei agora o velho, tendo os seus remos recolhidos, olhando perdido para os quatro cantos. Não havia mais nenhuma referência. 
Poitou o seu barquinho e se deitou no fundo. Alguma outra coisa mais estava acontecendo naquele momento e naquele lugar do “não sei onde”. 
À medida que escurecia, o amarelo da cena, a luz azulada, tênue e extravagante, baixava sobre o panorama. Gotículas, rabiscos e faiscantes cavacos poeirentos de estrelinhas azuladas serpenteavam sobre o lago e em tudo, em tudo que por ali havia. 
O pescador, uma vez mais, perscrutou os quatro cantos. Sem referência. Perdido! Ajeitou e reforçou a poita. Parecia confuso, estranho. Pegou alguma água com a concha das mãos e lavou seus olhos. Talvez a visão… 
Arrumou a tralha na popa do pequeno barco. Voltou à posição anterior, ajeitando-se da melhor maneira possível na proa e deitou-se, cobrindo a face com o velho chapéu de lebre, companheiro inseparável de tantas aventuras mínimas. Sem pressa. Tranquilidade. Dormiria, como das outras vezes em que se distraíra, a noite chegaria e ali pernoitaria. Poderia guiar-se pelo brilho do céu estrelado, mas já não tinha tanta disposição e nem tampouco havia o rastro prateado na superfície das águas. Somente a luz azulada. Ah! Também, pra quê?
Amanhã cedinho o sol se elevará por entre os coqueiros enormes e ele alinhará a quilha do seu barquinho para aquela direção, graças às remadas frágeis, mas constantes. Tomaria aquela rota e depois de um tempo – quantas e quantas vezes ele já a fizera? – Passaria de través a Pedra Furada, desviaria um pouco para a direita ao avistar a centenária ingazeira fincada e fortemente sustentada pelas fortes raízes à beira da barranca. Enrolaria a corda da poita num dos galhos, saltaria, subiria uns três ou quatro degraus da terra frouxa ancorada por paus e pedras e retornaria à sua casa.
Mas no dia seguinte o sol não se pôs de pé para o velho e pescador… Nem no outro… Nem no outro… Não haveria mais sóis. Nem noites. Não haveria mais estrelas ou luar! Ele e o menino estavam agora envoltos para a eternidade na suavidade da luz azulada e cintilante. Felizes! Felicidade nunca alcançada antes. Lá nunca mais haveria egoísmo, rancor, avareza, usura, ganância, pobreza, riqueza ou tudo o mais de bom, ruim ou supérfluo que houvera no insustentável mundo dos viventes. 
Agora todos iguais. Amigos.
Enfim, a paz?
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