Crônicas |
Quarta-feira, 10 Novembro, 2021
12:27
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Dr. Dirceu Badini
Zeca tinha um sonho, assim como Martin Luther King. Só que o sonho do Zeca era viável. Ele queria uma casa cor-de-rosa: paredes, janelas, portas, tudo, tudinho cor-de-rosa.
Mas, dentro das possibilidades e da sua realidade, o sonho do Zeca era tão impossível quanto ao do bendito negro americano, morto por querer igualdade entre nós. Zeca era trabalhador braçal nas fazendas, ora capinando o milho, cortando cana, esgotando o brejo para plantar arroz e o seu ganho com isto mal dava para subsistência. Não sobrava nada. Na maior parte das vezes nem dava para o mínimo sustento. Como poderia ele ter a casa dos sonhos? Mas sonhar não custa nada, não se precisa de dinheiro para sonhar. Basta sonhar. Faz bem e é de graça.
Teria de procurar outros mundos. Iria para Conquista, uma terra nova, lá pras bandas de Friburgo, onde haveria muito trabalho e também dinheiro. Ele não sairia do Valão por não ter trabalho, mas queria partir, economizar e voltar com a conta justinha de fazer, comprar... Sabe-se lá de que maneira, mas queria ter a casa cor-de-rosa.
Quebrou a cara! Lá, como aqui, o ganho também era pouco. Pior ainda: a comida! Ah! A comida! Todos os dias uma sopa de legumes, sobras da lavoura. No Valão, comia arroz, angu, feijão, um ovo de galinha de longe em longe e se matavam um porco a boia melhorava muito, pois sempre havia na marmita um pedaço de miúdo, um naco de chouriço no capricho, torresmo fresquinho e crocante. E quando a vaca caía do barranco? Fazer carne-seca e comer às pamparras, porque o pessoal mais assim, os grã-finos, não gostavam. Fazendeiro só comia carne de porco.
Mas na Conquista, não! Quiabo, cenoura, nabo, rabanete, beterraba, tudo do mato... Ah! Que saudade! Ele não conseguia comer aquilo, ele nunca gostou muito de verduras e legumes. Quando achava banana, era a glória! Às vezes, saía à rua e passava perto de uma quitanda, pencas e mais pencas de bananas amarelinhas, cheirosas e ele sem um mísero centavo para comprar. Um dia quase pegou umas, mas pensou, pensou... E a fome passou, só por imaginar as consequências.
Mudou de emprego. Arranjou uma carroça puxada por uma égua e foi trabalhar de meeiro com o proprietário. Mas o Zeca, indiscutivelmente, não nasceu com a bunda virada para a lua. Pelo contrário; toda as vezes que ele a tentava mostrar, a lua entrava em eclipse. E deu no que só poderia dar.
Numa das muitas viagens, a égua e a carrocinha cheia de tijolos iam subindo um determinado trecho quando percebeu que o animal não aguentaria vencer aquela ladeira. Questão de prática no ofício. Ficou atrás e ajudou com toda a pouca força que ainda lhe restava. E a coitada lá na frente bufava, gemia, ia de um lado para o outro, mas a carroça nada, parada no mesmo lugar. Zeca também extenuado e num determinado momento não aguentaram.
Égua e carroça desceram de ré, saíram da estrada e caíram numa ribanceira. Com o peso dos tijolos a carrocinha empinou e a égua ficou pendurada nos varais, amarrada pelas correias de couro. Foi um Deus nos acuda. Por sorte Zeca conseguiu cortar as amarras e o animal salvo. Mais problemas, mais dívidas. E aí?
Teria de voltar. Chegou à sua terra novamente como um soldado que retorna depois de uma guerra perdida. Pior! O soldado volta alegre, cheio de planos, feliz por estar vivo, recomeçar vida nova e melhor, sem dúvida. Esta, a única semelhança! Estar vivo. Mas vivo sem aquele sonho da casa cor-de-rosa? Sem sonhos há esperança? Sem esperança pode haver vida? E ele mais parecia mesmo uma caricatura. Mas estava de volta, sem sonhos, nem esperanças, nem nada, mas com uma certeza: deixar o tempo passar. Derrota!
Sentado à porta da venda do Tivinho, pernas cruzadas e os tendões retesados sob a pele negra e magra à mostra nos vários rasgões das calças; cotovelo apoiado sobre a coxa direita; tronco arqueado e coberto por uma camisa com tantos remendos que já não se podia definir qual o tecido original.
Queixo seguro fracamente pela mão semiaberta e dedos apoiados na face magra, boca desdentada e murcha, olhar perdido à distância, sem brilho, mais parecendo um clone malsucedido de “O Pensador”, resultado de uma tentativa desastrada de um anônimo cientista de uma Biafra qualquer.
O Zeca ganhou a casa. Grande, bonita, todinha cor-de-rosa! Tinha uma escada, sala, três quartos, cozinha e até banheiro com a água encanada que nascia no moledo nas grimpas do pequeno monte. Luz elétrica, antena parabólica, televisão colorida... Ufa! Ele não queria tanto! E como conseguiu?
O menino Cal deu-lhe como presente! Aquele magrinho, de cabeça grande, tímido e que tantas e tantas vezes Zeca o carregou nas costas. Aquele mesmo que ficava entretido, de cócoras, observando-o cruzar as taliscas de bambus para fazer a arapuca, pegar os inhambus ou juritis que ele acariciava e depois libertava. O que ficava feliz quando o Zeca emparelhava os bodes no seu carrinho para carregar qualquer coisa ou quando pegava a gaiola com o canarinho amarelo e “armava” na congonha à beira da estrada, perto do buracão. Aquele mesmo que cresceu, saiu, estudou, virou Veterinário, fazendeiro e voltou para a terra com sonhos, esperanças e o coração de sempre, enorme, alma maior ainda e deu uma pequena parte daquilo para tentar refazer o muito do que o Zeca nunca alcançaria por si. Aquele que deveria ser sempre imitado, copiado.
Zeca estava agora diante do tesouro, do sonho, do mimo, do tudo que não poderia e queria ter. Calado, sem piscar, polegar e indicador da mão direita apertando o queixo magro, aparentemente sem qualquer emoção, mas os olhos não estavam desprovidos do brilho habitual, certamente até brilhando um pouco mais, marejados.
Somente de uma coisa não gostou: vaso sanitário. Fazer sentado? Não! Não se adaptaria! Melhor continuar indo lá atrás do bambuzal e de cócoras, como sempre foi. Ali, dentro do vaso, colocou capim e palha, forrou com penas e deitou para chocar a sua preferida galinha carijó do pescoço pelado. Ela também nunca tivera um ninho igual!