Não encontrei esta palavra no Aurélio. Mantive-a porque era o termo usado para iniciar o preparo do fumo de rolo ou fumo-de-corda na casa do tio Pedro, Tipedro, fabricante tradicional de um dos melhores fumos da região.
– Vem gente até de Minas pra comprar, diziam.
Tipedro era um dos irmãos de meu pai. Bastante diferente dos outros sob todos os aspectos. Não muito alto, era magro, bem moreno, talvez por trabalhar sempre ao sol, fala mansa, amigo, muito amigo dos sobrinhos. Não havia um que não o adorasse.
Casou-se já velho para os padrões da época. E começaram a nascer os filhos, ou melhor, filhas. Quatro. O quinto foi homem e aí o Tatá disse que Pedro pararia, pois cavucou, cavucou até achar um homem e estaria satisfeito, decerto. Nada disso! “Véio” Pedro cavucou mais cinco vezes: em quatro achou homem e numa outra menina. Dez ao todo.
Falava baixo, entonação tão própria dele que se eu o imitasse ainda hoje, uma pessoa que o tenha conhecido identificaria o Pedro da Luciana. Nunca o vi zangado, brabo e nem nunca me lembro de tê-lo ouvido gargalhar. Quando ria somente puxava um pouco os cantos da boca e no máximo ouvia-se, baixinho e abafado, um “hum! hum!”. Mas nem por isso era um cara carrancudo, de mal com a vida, ranzinza, pelo contrário. Foi um homem de verdade. Perto dele você sempre estaria de bom humor, parecia irradiar e contaminar tudo ao seu redor com felicidade, santo remédio, sem dúvida. Não entendo nada disso, mas acho que o espírito encarnado em tio Pedro não precisou mais voltar. Completou com ele a sua missão iluminada. Benza a Deus!
Trabalhava a terra. Tudo o que tinha ou teria aquele chão pródigo, custasse o que custasse e sem necessidade de correção ou adubação suplementar, o daria. Milho, feijão, café, cana e, claro, fumo. Tudo crescia bem ali, inclusive as ervas daninhas que ele tinha sempre que capinar e aleirar. Capinar, plantar, colher…. Capinar, plantar, colher... Foi o que mais fez na vida. Quantas? Pra que saber?
Cultivar o fumo era a sua principal labuta. Quando o fumal já tinha certa idade, colhiam-se as folhas mais velhas, que ficavam mais na parte baixa e por último as folhas finais, a soca que não produzia um fumo de boa qualidade, mas tinha seu lugar no mercado. Fossem da soca ou não, as folhas eram colhidas e colocadas penduradas nas “pindobas”, armações de bambus abrigadas do sol onde as deixava para secar. Quando estavam murchas, não quebradiças, era chegada a hora de retirar sua nervura central, fazer a destala, para então as folhas serem colocadas no rolete e fazer uma corda simples de, mais ou menos, um centímetro de grossura. Depois essa corda era juntada a mais quatro ou cinco e se fazia uma corda grossa, com várias pernas. Era, digamos, o embrião. O fumo-de-corda ainda passaria por várias etapas; burilado aqui e acolá, até ser colocado à disposição do pobre consumidor. Na época ninguém sabia dos malefícios do vício de fumar.
A destala exigia um trabalho de muitas pessoas, pois teria de ser feita folha por folha. Por isso era comum, à noite, reunir famílias inteiras e ir à casa do tio Pedro. Ninguém cobrava nada e nem precisava ser convidado, era o mutirão. Gente espalhada para todos os cantos. Cada um recebia maços de folhas que seriam destaladas, dobradas ao meio, colocadas sobre a coxa e empilhadas uma a uma. Quando a pilha já tinha um bom tamanho, alguém recolhia aquela e trazia outra. E assim até tarde da noite.
Alzira, esposa do tio Pedro, mal tinha tempo de fazer café, bolinhos, broas, muitas outras coisas e servir ao pessoal. Ninguém estava ali para trabalhar em troca de qualquer remuneração. Uns até poderiam ter interesses outros, aproveitar o tempo e a oportunidade para arriscar um olharzinho convidativo para alguma menina, namorar. Jogar conversa fora, contar causos, ouvir alguém que tivesse viajado ao Rio e dizer das novidades, mas a totalidade estava ali para colaborar, vontade de ajudar, cultivar a amizade, compartilhar, dividir.
Quando as pessoas vizinhas estavam bem, alegres, todos ao redor também estariam, todos participavam das alegrias e também dos infortúnios. Solidariedade. Ainda há muita gente que sabe o significado, mas até quando? Será que eu ainda vou viver o suficiente para ter de explicar o significado de solidariedade? Eu, sinceramente, espero que não. Eu quero morrer antes disso. De solidariedade, família e amigo eu não abro mão. E é tão fácil, gente!
Dei uma bicada generosa na minha cachaça envelhecida anos e anos; coloquei um CD do Louis Armstrong no drive do micro, cliquei na faixa “What a Wonderful World”. Empurrei ligeiramente minha velha cadeira para trás, escarrapachei-me nela. Entrelacei os dedos das mãos e as coloquei na nuca, fechei os olhos e inclinei ligeiramente a cabeça para trás. Foi a maneira nada convencional que eu encontrei para fazer um brinde a mim mesmo pela sorte de ter vivido àquela época.
Saúde, velho Badini! Disse-me lá do fundo o meu ego, salpicando de felicidade tudo ao seu redor.
Saúde, amigão!
Diálogo mudo. Somente é possível quando o consciente se entende muito bem com o inconsciente.