BANDEJÃO
Contos  |  Quinta-feira, 19 Janeiro, 2023 9:23  |  Visitantes e Leitores: 1362  |  A+ | a-
Dr. Dirceu Badini

Ah! Pra que fui ler a coluna do Aristélio de uma dessas quintas-feiras passadas? Bati o olho no título e alguma coisa buliu com as entranhas do meu cérebro. Esta palavra não conhecia até antes de entrar para a Faculdade de Medicina. Nego de roça, do interior, come mesmo é no prato, marmita, cuia e em outros trecos, não em bandeja. Que eu saiba, bandeja serve para botar xícaras ou copos, nunca comida.
Mas será que ele se referia a aquele bandejão? Continuei lendo. Era! Putz! Me fez dar um retrocesso, um passo atrás no passado de quarenta anos. E eu que não gosto do passado. Para mim, somente serve para ter recordações bobas ou para arrepender-me de alguma coisa que fiz, das muitas que não fiz ou não pude fazer. Sou um velho metido a besta, vivendo no presente e fã do futuro, com camiseta, boné, carteirinha, bandeira e tudo mais. Se fosse possível, de vez em quando dava um pulinho lá.
Mil novecentos e sessenta e um! Poucas vezes tinha ido ao Rio e numa segunda-feira eu ia matricular-me na faculdade. Aquela não era a primeira vez que tentava o vestibular. Levei ferro em duas outras oportunidades porque não tinha condições de ficar e fazer cursinho. Trabalhava como professor nos colégios do interior e em fevereiro cismava disputar com os “cobras” um lugar dentre as cem vagas oferecidas. Ferro dos mais merecidos, não tinha como competir. Naquele ano ia ser diferente: ou dava ou descia! Se não conseguisse, desistiria, mesmo porque eu já tinha mais de vinte anos, namorada firme e pai de mineira não costuma dar essas facilidades.
Trabalhei até junho e nas férias procurei ajuda. Encontrei lugar para dormir no apartamento do Ivo Kelis, comida e roupa lavada na casa de uma prima Zezé, que morava no Barro Vermelho, em S. Gonçalo e o Chianelli deixou estudar no Curso Pasteur, de graça, cara! Agora só dependia de mim e mandei ver. Estudávamos juntos eu, Omed Sebba e Carlos Fernando, o Dodô e fizemos inscrição para a Fluminense e eu também me inscrevi na Nacional, porque soube que lá havia comida e casa do estudante. Passei nas duas, mas o Chianelli insistiu que eu fosse estudar no Rio e somente eu o “véio” Oswaldo, do Pasteur, passamos lá. Briguinhas de cursinho pré-vestibular já existiam naquela época e ter um aluno na Praia Vermelha era uma tremenda surra no concorrente.
Sabia que teria de pegar o bonde da linha 4, no Castelo. E para voltar? Ensinaram-me que, quando o bonde entrasse na Esplanada, eu ficasse de olho numa grande placa “A Equitativa”. Fácil de ver. Passando-a, puxava a cordinha, dava um puto dum cacete no sininho (nego da roça puxa essas cordinhas com muita força. Eu tinha receio do motorneiro não escutar e me levar para a Central. Funicatus est! (Manja Latim? Não? Que pena! Não sabe o que está perdendo!), descia reto, caindo direto nas barcas e era só atravessar. Isto era tudo que eu sabia do Rio.
Cheguei lá naquela segunda-feira e fui calorosamente recebido por um monte de amigos, me abraçaram e todos estavam muito alegres pelo meu sucesso. É ruim, hein! Quase me mataram com um trote de dar inveja e a minha sorte foi chegar um outro calouro. Fui retirado pelas mãos de um veterano que me levou até a saída e me largou por lá. E agora? Ficar aqui esperando bonde? Vão-me pegar de novo, mas a sorte estava do meu lado e aquele colega também foi liberado e pegamos um ônibus próximo a TV Tupi e nos mandamos. Ele era carioca. Ainda bem!
Já em casa tomei banho e fui rápido ao barbeiro raspar o que sobrou de cabelo e coloquei aquela boina verde com as maravilhosas letras brancas FNM UB estampadas. Orgulho, muito orgulho! Soltei telegramas para tudo que era banda. Sensação mais gostosa do que aquela, eu somente tive quando nasceram meus filhos. Pensando bem agora, “bate”: eu também estava renascendo! Afinal, depois de três gerações no Brasil, haveria um doutor naquela família de imigrantes italianos, trabalhadores braçais e pouco letrados os quais, cada vez adoro mais.
Lá tínhamos a comida baratinha, lembro ser cem alguma coisa, muito barato mesmo. E era servida no bandejão, sempre muito bem limpo, quentinho, saído da estufa e comida de primeira. Adorava tudo, apesar do frango branquelo, não aquele douradinho que minha avó e agora Isa, minha esposa, sabem fazer com aquele caldo grosso... Hum! Em cima de um angu também saído da panela de ferro e salpicado de queijo ralado... Hum! Depois de uns goles da cachacinha de mais de dez anos... Huuuum!
O peixe das sextas-feiras, a salada, a sobremesa, o leite (não consigo gostar; já não sou bezerro), e um bife à milanesa, grosso, carne muito macia e de cor mais escura do que a carne de gado comum. Fiz um comentário elogioso à carne com alguém sentado à mesma mesa:
Baleia! Disse seco e sem olhar para mim.
Fiquei na minha. Desconfiei que aquele puto fosse carioca e estava a fim de gozar de um calouro "papa-goiaba" bocó. Não adianta a gente da roça se esforçar para parecer da cidade. Os danados percebem. Deixei para lá. Comer baleia! Onde já se viu? Ou será que era baleia o que eu comia? Pena não haver mais, pois ia fazer um senhor churrasco, coisa que – nada de ser modesto – sou craque. Será que eu já comi baleia? Baleia! Hank!
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