MINDIM, O JUMENTO
Contos |
Segunda-feira, 5 Setembro, 2022
18:39
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Dr. Dirceu Badini
– Senhor José Gouveia?
– Sim sinhô! Seu criado, mas o sinhô pode me chamar de Zé do Pepê como todo mundo me conhece por essas bandas.
Zé do Pepê era o proprietário de uma gleba que nem ele próprio sabia quanto tinha de área ou o quanto valia. E nem se interessava por isto. Trabalhava nela desde menino e lhe coube por herança dos pais.
De uns tempos para cá já não tem mais necessidade tão grande de trabalho sol a sol, pois seus dois filhos e o genro exploram as terras e lhe repassam uma terça de tudo que nela produzem. Fica a maior parte do tempo fazendo coisas que deseja, a hora que deseja, matando o tempo pitando o inseparável cigarro de palha e, vez por outra, quase o dia todo tentando uma barganha nem sempre realizada a contento.
Não se exigia muito para levar uma vidinha tranquila naquela região e naqueles tempos. Não se tinham despesas com energia elétrica, telefone, carro, gasolina e tampouco gastos com a educação dos filhos fora de casa. Comprar comida, muito pouco, quase tudo se produzia ali, roupa nova somente duas vezes por ano: uma após as colheitas do verão, do dinheiro vindo das sobras da produção vendidas e no dia do aniversário de algum. Sapatos? Raramente usados, duravam uma eternidade. Se os pés estragassem num prego, topada num toco ou cortava no caco de vidro a natureza consertava de graça. Sempre foi assim.
No mais eram sempre as mesmas rotinas com a vestimenta. Sujava, lavava; sujava, lavava; rasgava, remendava…. Até haver necessidade de uma outra, pois já não se tinha mais lugar na camisa original para pregar remendos. Tudo muito simples e sem queixas, conformados com a rotina das várias gerações.
Sô Pepê tinha uma fonte extra e lhe rendia uns merréis. Era oriunda da atividade do Mindim, jumentinho merreca, pequenininho, feio pra dedéu, mas tiro certeiro no cruzamento com as éguas da região. Se a princesa estivesse capaz, era uma só e burrinho nasceria daí uns tempos. Nunca falhava.
Morava numa casa antiga de fazenda, de dois andares, sendo o inferior para guardar tudo e uma escada retilínea de peroba elevava ao pavimento superior. Em baixo, para proteger a parte que tocava o terreno, havia dois ou três degraus de pedra e era o lugar predileto do Sô Pepê sentar e curtir o seu fedido cigarro de palha. Para o gado não bostear perto da casa, havia ali um cercado de réguas e assim o terreiro sempre estava varridinho, limpo.
O diálogo continuou de longe:
– A sua graça, qualé?
– José Inácio, mas o senhor também pode me chamar de Zé!
– Então sô Zé. Se o sinhô trouxe a eguinha pra cruzar, pode tomar o “trilho” que passa debaixo do pé de coité e ruma pro curral logo ali na frente. Lá o Francisquim sabe tudinho como fazer e se precisar ajuda, guiar o Mindim, essas coisas…. Ele sabe tudo. Mindim às veiz fica nervoso e custa acertar, sabe? Mas ieu preciso alertar o sinhô: se a eguinha tiver no dia apropriado, o sinhô disapeia inhante porque o Mindim vai com tudo pra cima dela. Trepa com o sinhô em cima e tudo e – Deus me livre e guarde, Santo Pai! – Se ele errar a pontaria o sinhô vai tá fritinho. Lasca o sinhô nas duas banda na hora! Hehe!
O Sô Pepê era muito brincalhão, todos já sabiam disto e até o apreciavam pelo espírito alegre e despreocupado.
– Não senhor! Eu só queria tirar uma prosa com o senhor, se não for causar nenhum “estrovo”.
– Estrova nada não sinhô. Marra a franguinha aí e se achega!
Troca de cumprimentos. O Zé sentou-se na pedra da escada ao lado direito do seu Sô Pepê.
– Leva mal não, sô Zé, mas passa pro lado de cá. Eu tenho a mania de fumar e cuspir muito e o meu pescoço já vira pra esse lado quase sem eu mandar. Nem penso e cuspo pra direita. Se ficá aí eu vou acertar o sinhô na primeira. Hehe!
– Sô Pepê! Eu vim aqui para propor um negócio pro senhor. Eu queria comprar o Mindim, porque eu tô pensando criar bastante burro e mula na minha fazenda. Vejo isso como um bom negócio daqui pra mais uns tempos.
– Comprar Mindim? Disse depois de ter lançado uma cusparada tão abundante que levantou até a poeira da terra seca. Vendo não sinhô! Sabe? Ele me dá um lucrim e também já até faz parte da família da gente, no bom sentido, o sinhô intende. Aqui não tem nenhum parente de sangue dele não sinhô.
– Pede besteira, Sô Pepê! Pede besteira grande, homem!
– Ta certo. Quero dois mil conto!
Isto aí correspondia mais ou menos a dez vezes mais o valor do animal, mas o Zé sabia que logo, logo ele teria de volta o dinheiro investido, dado as qualidades e a fama do jegue. E para impressionar o Sô Pepê, resolveu fazer uma contraproposta alta e comprar à vista, pagar na hora:
– Dou seiscentos no pau!
Sô Pepê parou de rabiscar o chão com uma varinha de guaxima, retirou o lambido cigarro da boca, lascou outra vigorosa cusparada e depois se ajeitou pro lado esquerdo de modo a encarar o Zé olho no olho:
– Sô Zé! Se a gente tabular e fechar negócio do Mindim vai ser com o animal compreto. Pedaço de jumento ieu num vendo! Pro mal lhe pregunto: cumo é que o sinhô vai se arranjar com o pau sem o jumento? E ieu? De que vai me valer um jumento sem o pau? Me discurpe! Vendo pedaço de jumento não sinhô!
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