A gente fazia assim: arranjava umas tábuas finas e estreitas, geralmente produtos de desmanche de caixas de velas ou latas de querosene que o tio Nelson nos dava, uns pregos pequenos, dez por dez ou doze por doze, tampinhas de garrafas, um martelo, um pequeno serrote e canivete. Pronto!
Daquilo, nós fazíamos nossos caminhões. Uma tabuinha de uns vinte ou trinta centímetros por dez de largura. Em cima, dois pequenos tacos, uma caixinha servindo de carroceria e no prolongamento, a cabine formada por duas tábuas verticais com uma abertura imitando as janelas e, mais adiante, um outro pedaço de madeira mais avantajado servindo de capuz do motor.
Dois outros pedaços de madeira atravessados sob a longarina serviam de eixos. Na parte de trás, duas tampinhas de garrafas opostas serviam de pneus duplos e na frente, as mesmas eram embutidas uma dentro da outra formando um par de rodas simples. Estava construído o melhor, o inigualável veículo jamais produzido. Não importava o seu aspecto concreto, real; o importante era o abstrato, o imaginado, aquele delírio gostoso.
Eu e Guilherme tínhamos um lugar preferido para brincar. A casa da fazenda era antiga, construída sobre grandes esteios das mais variadas madeiras retiradas das matas que outrora existiram ali: peroba, ipê, braúna, angico e tantas outras que não mais me lembro do nome.
Não havia trator. Escavar, somente com o enxadão e picaretas. Terreno acidentado. O mais fácil (e imbecil também, já que não plantaram outras naquele mesmo lugar), era cortar tantas árvores quantas fossem necessárias e fazer a casa sobre aquelas altas estacas, colocar baldrames e nivelar o piso. Não havia casas baixas, todas bem altas do chão. Melhor para nós que ganhávamos um lugar magnífico para ter a nossa estrada, pontes, subidas, descidas, curvas, cidades. Sonhos!
Nossos caminhões transportavam de tudo para qualquer lugar, até para o Japão.
– Japão? Que Japão?
– Japão, ué! Era a resposta mais sábia que tínhamos para dar.
Nós não sabíamos propriamente o que era e muito menos onde estaria esse Japão. Mas isso ocorreu na época da guerra e ouvíamos falar em Itália, Estados Unidos, Rússia etc. Ah! Também ouvíamos Grã-Bretanha, mas nós achávamos um nome muito feio, esquisito e decidimos que nossos caminhões não iriam para aquele lugar.
Lá, debaixo do assoalho, no porão, nunca chovia. A terra era seca, fininha, fresca e ainda havia grandes mangueiras bem perto tapando o sol de manhã, teimando em entrar lá. Nos fundos, mas não muito longe, o barulho gostoso da cachoeirinha que descia pela pedreira abaixo e o martelar sincopado do carneiro hidráulico. Nada para perturbar, a não ser as galinhas e outros pequenos animais da fazenda que ali também procuravam abrigo nas horas mais quentes do dia.
Coisas para transportar não faltavam. Latas de leite, feitas de frascos de penicilina vazios, caixas de fósforos vazias, saquinhos de tecido que Wanda, minha prima, cosia e enchíamos de areia; toras de madeiras apanhadas dos pequenos galhos caídos das mangueiras vizinhas e areia a vontade. Barbante da farmácia era excelente corda para prender a sacaria ou o madeirame transportado. Eles eram brancos e vermelhos, enrolados como uma corda em miniatura. Quando descarregávamos a carga, enrolávamos a “corda” no malhal do caminhão até ser utilizada de novo.
Guilherme ganhou uma caixinha com aquelas tabuinhas pintada imitando tijolos, telhados, janelas, torres, etc. Nós fazíamos cidades, posto de gasolina ou casas da roça à beira da estrada. Galhinhos de qualquer planta eram transformados em grandes árvores que enfeitavam as suas margens. Nunca houve acidente, atropelamento, coisa ruim, sabe? Era uma rodovia perfeita. E não tinha asfalto (na realidade, nenhum de nós nunca tinha visto ainda uma estrada asfaltada).
Pensa que nós achávamos que aqueles caminhões eram de brincadeira? Achávamos nada! Eu penso que até hoje, com toda esta evolução que o mundo teve, precisa ter e terá, ainda não inventaram caminhões como aqueles. Magníficos! Lindos! Nunca enguiçavam ou nos traziam algum contratempo. Nunca!
Para nós, não eram meramente uns pedaços de paus ajuntados e pregados uns aos outros. Nós abríamos a porta, sentávamos, girávamos uma chave singela no painel da direita e apertávamos o botão starter no lado esquerdo. Por vezes, para um pouquinho de emoção a mais, fingíamos que o motor principal demorava "pegar" e o de arranque ficava funcionando um pouco mais. Era assim que acontecia com os verdadeiros. Nem sempre "pegava de estalo". E lá íamos viajando, tanto no sentido natural da palavra como no sentido figurado. Viajar! Viajar pra aonde quisesse. O impossível para nossos caminhões nunca existiu.
Às vezes me surpreendo conversando comigo mesmo. Coisas do cérebro, memória antiga, memória recente, amídala, hipotálamo, lobo frontal. Não liguem. Coisas materiais. Olhar pedido, não enxergando nada, nada também ao redor, só eu.
• Será que não vão fazer mais nenhum caminha...
• Mas é muito fácil! Só ajuntar mad...
• Não acredito ainda haver criança capaz de pegar serrote, martelo e...
• Mesmo se houvesse, haveria uma casa de fazenda velha, com assoalho alto, sombras de mangueiras...
• É! Criança hoje vai muito cedo para a escola, quer brincar com computador, estressada, procurando matar mais monstros ou pessoas com armas podero...
• Matar mais pessoas dirigindo carros pela rua, subindo pela calçada, atropelando até a...
• E ganha quem mais mata...
Bobagens. Bobagens! Coisa de gente velha, de cérebro sexagenário, esclerosado. Criança é sempre criança e sempre será assim. Nasce boa, pura, somente com os seus instintos naturais. Nunca vi uma criança ruim e se fica, é muito depois, em contato com os adultos. É! Mas são os adultos que fazem aqueles jogos e a meninada, acho, não tem opções. (Eu pessimista!).
Besteira! Criança de hoje é muito mais esperta, nem há comparações com aquelas do meu tempo e não tem jeito! Tem que ser assim. Vai brincar de quê? E onde? Mas, me preocupa um pouco se lá, naquele cérebro em formação, aquelas aventuras no micro não poderão ser transformadas em realidade, tal como eu, criança, fazia com meus caminhões toscos. Tudo está evoluindo muito rápido para que a evolução natural possa acompanhar e controlar. O carro já não está querendo passar à frente dos bois? E as leis da evolução são tão impiedosas! (Droga! Pessimista outra vez! To ficando chato! Vou parar!).