“Os Deuses não deduzem do prazo fixado para a nossa vida o tempo que se passa pescando” (inscrição Assíria de 2000 a.C.).
Se esta lei ainda vigora, estou feito. Terei um bocado mais de dias para viver, pois sou um pescador, ou melhor, fui um pescador desde a minha meninice, acompanhado sempre de meu pai que me livrou de um acidente por afogamento num dos lugares do Córrego dos Índios onde mais pratiquei as peraltices da minha infância e juventude.
Tenho ainda guardado vivamente na minha memória criança de uns sete anos, se tanto, o local onde escorreguei no limo da pedra e fui pro fundo. Depois de facilmente resgatado, ferrei na maior manha e – como me recordo! – De volta, olhei para trás e vi flutuando o meu chapeuzinho de palha e o caniço de bambu. Tenho agora a presunção de que aquela cena configuraria minha condenação de jamais voltar à beira de um córrego para tentar apanhar um peixe. Voltei. Ta nos genes.
Anos depois, já formado e exercendo a minha profissão numa casa de saúde em Pádua, conversávamos, eu e um pediatra fã da arte, quando se aproximou um colega mineiro e cirurgião, ficou ali um pequeno instante e saiu dizendo, em tom de brincadeira, que esse trem de pescar era coisa de oligofrênico.
– Ficar ali horas sentado no chão, segurando um bambu ou o que valha, sujeitando-se a vontade de um peixinho vagabundo que também não tem nada que fazer, puxar e se ferrar, se estivesse num daqueles dias azarentos!
Isso aí. Toda a delícia ou toda a nossa oligofrenia está calcada somente nessa imagem que o Dr. Zé vaticinou, mas nunca a quis sentir. Ta nos genes também.
Acredito mesmo que quando pescamos, perdemos muito da nossa identidade, nossas características e por que não? Agimos como verdadeiros oligofrênicos. Não tenho a mínima ideia do pensamento e modo de agir de uma pessoa diferente de mim, mas mesmo tão heterogêneos, carregamos muita coisa em comum neste mundo real e também naqueles das fantasias, êxtases e o dos maldosos delírios por si só extravagantes.
Quando estamos ali absortos, desligados de tudo e de todos, mesmo havendo ao seu lado vários oligofrênicos, não estamos no nosso mundinho habitual. Uma pescaria não é somente o ato de segurar uma vara na expectativa de uma beliscada repentina. Aquele é o instante mágico, sim! É ali que nos apossamos de todo poder do estresse amigo e necessário. Todos os animais precisam dele em vários momentos da sua existência para estimular glândulas produzirem substâncias químicas necessárias e úteis ao nosso equilíbrio interno. É imperioso estar sempre alerta.
A pescaria não começa e nem termina no ato de pegar o peixe. Isto é até o de menos. Toda aquela agitação ao preparar material, iscas, bisbilhotar a caixinha de apetrechos, untar os molinetes, checar a integridade da linha, treinar um novo nó aprendido há pouco, enfim, tudo aquilo faz parte da benéfica ansiedade só terminada quando regressamos e dormimos cansados do corpo e refeitos do espírito.
Uma tentativa mínima que seja de um peixe desperta nas nossas entranhas sensações completamente impossíveis de serem definidas. A gente sente um frisson maior, coração galopar ligeiro, adrenalina e outras “inas” em quantidades dosadas e adequadas para ser saudáveis são disparadas, acatadas pelos vários receptores e o nosso cérebro é desligado. Agora estamos somente à mercê do nosso sistema automático de manutenção e revisão das diversas combinações e conexões nem sempre sadias existentes no nosso órgão maior. Faz o backup. Revisa os novos arquivos: salva alguns, deleta tantos outros e se esconde sob uma hibernação mais do que justa. Ele descansa ao seu modo.
E nem é somente isso. Sentar-se na barranca numa noite quente e sem um ventinho sequer, senão vez por outra aquele bafo quente soprado do rio. Cheirinho da terra; cheirinho dos matos; cheirinho da água barrenta. Escutar e sentir a vida vicejante após o pôr do sol: sons raramente ouvidos, cantorias singulares, faiscando rente ao solo os luzentes e inquietos vaga-lumes em busca do amor. Escutar a natureza adormecida e o rebojo envolvente das águas.
Olhar para cima. Céu das estrelas. Algumas mais travessas, saltimbancos das galáxias, se arriscam em disparada e se escondem na escuridão ou se esfarelam na atmosfera. Passeios dos satélites alienígenas flutuando nos céus, saindo da penumbra, vagar por instantes iluminados pelos raios solares ainda persistentes nas alturas e se aprofundarem no negrume da noite lá de cima. Um avião pisca seus sinalizadores e foge rápido. Visitante inoportuno!
Quem poderá abstrair-se de tamanha paz? Um pernilongo buscando sobreviver? Um peixe sem cerimônias e malcriado puxando a linha? Sacanas! Logo agora! Ele provavelmente vai se safar do anzol, libertar-se e me deixar desligado. Não lhe dou importância. Pouco retiro os meus olhos do negro da noite ao meu redor. Ali agora está reinando o outro mundo do meu outro eu. Neste que flui não há pescadores, não há peixes, somente paz nos rondando. Ouvir, sentir, sorver toda a magia da natureza de uma forma que nenhum outro ouse sequer imaginar. Deixar-me um tempinho mais sob a proteção da bendita oligofrenia. Eis tudo.
Não concorda, imagino! Então o mais cômodo, o mais barato é ir à peixaria, escolher aquele peixe, pagar e comê-lo. É quase a mesma coisa. Satisfaz também.