Meu pai e minha avó viviam às turras quanto às crendices de cada um. Papai não acreditava em nada daquilo que a maioria das pessoas respeita, adora ou até venera. Em parte, eu percebia que gostava mesmo era de provocar a velha Zipina, talvez pelo seu fervor católico e que na hora do aperto apelava pra tudo que sabia ser eficaz ou quase na crendice dos outros. Era, mas não era. Esconder espelho dos relâmpagos, jogar sal grosso no fogão para minorar as chuvas e ventanias brabas, queimar palha benta atrás das janelas era bamba, como minha mãe, numa simpatia. No que não sabia de cabeça recorria ao bom e sempre presente Almanaque do Pensamento.
Não sei se ainda existe e nem sei de fato o que ele continha, mas se você quisesse agradar a minha avó, arranjasse um jeito de adquirir um volume dele e a presenteasse. Eu mesmo, depois que fui para a cidade estudar, comprava alguns e levava no final do ano, nas férias de dezembro, um exemplar para o ano seguinte. Ela abria um sorriso e o folheava na hora.
Ela era praticamente analfabeta. Lia, mas como aquelas crianças iniciantes na leitura que leem sílaba por sílaba e em voz alta, de arranco... No final da leitura, evidente, não sabia patavinas do que leu. Por vezes a coitada da Zipina, cuja toda vida se constituiu de trabalho braçal na lavoura, na horta ou sempre cuidando casa, nos dizia do que leu: Cara! Na maioria das vezes o que ela nos falava não tinha nada a ver com o texto. Não teve tempo para aprender e nem nós nos aproveitávamos disso para aporrinhar a mente da vovó. A sua personalidade estava acima de tudo aquilo. Que caráter! Que joia! Mesmo sem o polimento da cultura, resplandecia luz para todos os lados de quem dela se aproximasse. Era uma gema que dispensou o polimento. Por si só já brilhava... E quanto!
Foi uma pessoa incrível. Nunca mais vi um ser nascido, criado na roça, estudo praticamente zero e possuir uma facilidade enorme para liderar. Problemas, onde estivessem, driblava-os e acho por isso ela implicava tanto com o papai. Além de ser um incrédulo em tudo, ainda desdenhava da vovó e as previsões do almanaque. Realmente a dona Zipina não fazia nada sem antes pedir alguém para consultar as páginas do Pensamento.
Pôr as galinhas pra chocar, castrar qualquer tipo de animal, plantar isso, plantar aquilo, vai chover, não vai chover... Ah! Era com o almanaque! Não sei mesmo o conteúdo do dito, mas dava conta de tudo na sua visão. Se fôssemos analisar a previsão do tempo: moleza pra ele! Sabia de cor de janeiro a dezembro. Na verdade um assombro, pois ainda hoje os meteorologistas, apesar dos satélites e outros trecos, levam rabo de arraia da natureza que resolve glosar os mestres. Pois com vovó e seu almanaque não tinha erro. E se não chovesse, como estava previsto naquelas páginas?
– Choveu perto. Garanto!
Pois numa certa época a seca foi muito intensa, braba pra chuchu. Meu pai perdeu algumas cabeças do gado, mas não mudava seu humor. Logo foram providenciadas as novenas. Participei de muitas, não no sentido da minha fé propriamente (era ainda um menino), mas lá na fazenda aquilo na realidade se tornava num motivo para sair, passear, enfim, lazer. Novidade para os capiauzinhos. Saíamos, à noite, um bando de gente estrada afora com aqueles santos numa espécie de andor, velas, muitas velas acesas e a cantoria. Nunca consegui aprender alguma. Lembro-me bastante de uma mulher que cantava muito alto e fino. Destoava do resto.
Parávamos numa casa à beira do caminho e cantava ou rezava rogando a Deus por chuvas e depois tocava o bonde. Caminhávamos horas e quilômetros sempre ouvindo a mesma musiquinha furreca pra mim e exortação de fé para a maioria. Acho que meu pai nunca acompanhou uma daquelas novenas. E deve ter sido por isso que a minha Vó, certo dia, resolveu chamar-lhe às falas e passar um bom pito.
– Delço! Como é que você pode ficar assim! Suas vacas, bezerros morrendo, das plantações não se aproveita nada e nem parece acontecer alguma coisa. E seus prejuízos? E foi descascando o cipó.
Meu pai não se intimidou, nem tampouco fez algum comentário contra a sogra e ainda falou calma e mansamente:
– Dona Zipina. O que está acontecendo com o meu gado não é doença ou coisa parecida. Falta chuva. Falta capim e sem comida elas morrem. Se eu fosse Deus, a senhora esteja certa de que nada disto estaria sendo visto. Mandava chuva pra todos os lados, mas eu não sou, não tenho intimidade com ele e vocês, mesmo se esforçando, parecem também não merecer a mínima piedade d’ Ele. Querer alegar que eu sou culpado porque não acompanho as ladainhas... Será que por causa de somente um descrente ele manda o cacete em todo mundo? Eu, hein!
Hoje aquilo ficou na minha cabeça, depois que resolvi escrever este texto: se papai pudesse ser Deus? O que faria? Eu temo saber.