APRENDIZ DE COSTUREIRA
Contos  |  Sexta-feira, 21 Julho, 2023 12:27  |  Visitantes e Leitores: 1376  |  A+ | a-
Dr. Dirceu Badini
Tempos difíceis, família grande numa época de escassez e assim todos ali tinham uma atribuição para minorar as dificuldades. O maestro era o Bertoldo, morador de uma pequena cidade do interior mineiro, separada do Estado do Rio pelo Rio Pirapetinga. Era um representante típico das três raças que compõem a brasileira: cabelos pretos e lisos e pele morena lembrando a do índio mesclado pela coloração negra dos africanos. Assim também era a sua mãe e sua filha Isa, adolescente, magrinha, olhos muito vivos, grandes e negros e aquela pele característica. Muito bonita!
De manhã ela ia ao grupo escolar. Chegando de volta ao lar, almoçava e já tinha de enfrentar a cozinha, lavar, enxugar e arrumar todas aquelas panelas, pratos e demais utensílios usados no almoço. Depois disso feito, pegava a sua sacolinha com as ferramentas de aprendiz de costureira: fita métrica, tesoura, agulhas, linhas e mais que houvesse e ia para a casa da Cida aprender o ofício. 
Iniciava, como todos, com alinhavos, bainha, caseava para botões ou fazia umas barras e bordava umas coisinhas mixurucas, furrecas e, como mágica miraculosa, transformava sacos alvejados de trigo ou açúcar em eficientes toalhas de banho ou de rosto.
Mas a Cida resolveu casar-se e teria de acompanhar o marido. Sabe, já com mais de vinte e cinco anos, séria candidata a “insubmissa” para a época, não tinha cacife suficiente para bater pé e ficar na cidade. Teve de acompanhar o marido para Volta Grande e a aprendiz ficou sem escola. Não para a filha do Bertoldo. Saiu com a menina e foi até a casa da Ivete:
      - A Isa vai ficar com você para aprender a costurar. Pode chegar serviço nela com vontade! Dá conta!
Isto sem saber se a Ivete queria ou podia. Ninguém dizia não ao senhor Bertoldo. Não por ser brabo, brigador ou coisa que o valha. Não! Mas pela sua personalidade, pelo seu denodo, pela sua maneira de ser. Era muito respeitado e querido no lugar, tratava todos com muita igualdade e lealdade, e sempre procurava ajudar seu semelhante. Ele também não conhecia a palavra não, se alguém precisasse dos seus préstimos.
      - É um prazer para mim, Sr. Bertoldo. Eu já soube que ela leva muito jeito e logo, logo vai me passar! Disse sorrindo e passando a mão carinhosamente pelos longos e fartos cabelos negros da menina bastante constrangida, pois ela sabia que a Ivete não gostava de ensinar a ninguém a arte de costurar.
Por coincidência ou por já estar tudo matutado, dias depois apareceu na varanda da porta da cozinha uma máquina de costura usada, em perfeito funcionamento, com um ponto muito bom, de acordo com as garantias do seu Bertoldo. Isa levou um susto. Nunca ainda tinha cortado ou pedalado a máquina, só fazia costura de mão e ele queria porque queria que ela iniciasse fazendo camisas para ganhar algum dinheiro. E dizer não para o Sr. Bertoldo era uma das maiores heresias cometidas.
Partiu para o merchandising (engraçado! Ocorreu-me aqui agora a hipótese do Bertoldo marqueteiro! Deveria ser o maior barato!). Ficou na varanda da casa à espera de alguém para começar a fazer a propaganda da nova costureira.
Numa tarde de sábado apareceu o Geraldo, morador do Morro da Brasilinha e bem caracterizado: uma camisa muito bem passada e engomada pendurada no ombro esquerdo e de baixo do braço direito um embrulho bem feitinho num papel de cor laranja e amarrado com um barbante em forma de cruz. 
       - Vai para a costureira, Geraldo? Perguntou o Bertoldo. Da maneira como estava, não poderia mentir. Seria como pretender disfarçar uma galinha choca em vaca leiteira.
      - Vou... E não teve tempo de dizer mais nada:
      - Cê besta rapaz! Vai pagar muito caro lá! Pode deixar aqui que a Isa já tirou o curso do corte, está costurando uma beleza, só vendo, e vou fazer uma coisa: como é a primeira vez, você não vai pagar nada por este feitio! Argumento mais do que convincente: de graça!
      - Ta bom, Sr. Bertoldo. Fala pra ela aumentar uns dois dedinhos na largura porque os butão da frente já tão mei repuxado! Os aviamentos ta tudo aí drento!
Isa quase deu um treco. Nunca tinha manejado uma tesoura para cortar nada, mas o seu pai insistiu ser fácil, somente botar em cima, cortar maior e emendar com a máquina. E quem ia dizer não ao Sr. Bertoldo?
Sentou o pau. O pano não deu. Geraldo comprou mais e no final, depois de uma luta tremenda, a camisa estava pronta e uma curiosidade imensa para saber como ficou a obra. Isa ainda não estava convencida de que conseguira fazê-la. Escondeu atrás da samambaia enorme pendurada na varanda e esperou. Dali dava para ver ao longe a rua que descia da Brasilinha. Parecia o Geraldo. Estava gozado. Estranho. Chegou mais perto. Meu Deus! Era o Geraldo! Agachou e passou para dentro de casa para não rir muito perto dele.
Aquilo não parecia nada com camisa. Para complicar, ele comprou um tecido listrado, um riscado, como se dizia. Parte da camisa tinha listras verticais, outras oblíquas e até mesmo, transversais. As pessoas que encontravam o pobre Geraldo não resistiam e quando passavam olhavam para trás, passavam a mão pelo cabelo não entendendo nada. Ele, coitado, achando que estava abafando ainda arrumava a gola... Ou o que deveria ser uma gola, um treco costurado naquele lugar próprio das golas. O pior era o bolso: começava no lado esquerdo do peito. Cruzava para o outro lado passando junto a cava e quase chegava às costas, mais parecendo embornal de botar feijão, milho ou coisas do gênero. A camisa do Geraldo era futurista, psicodélica, coisa que ainda hoje nenhum E.T. botaria defeitos e ficaria ouriçado ou assanhado para ter uma igual.
Faz mal não. Em todas as épocas e em todos os lugares do mundo pessoas nascem fora da época. Azar do Geraldo? Muito bom para mim e para os nossos filhos Luciano, Mércia, Carmela; para todas as Marias e Josés; para todos os nominados ou anônimos que de uma forma ou de outra, por um curto ou longo período tiveram a sorte de conviver com você, Isa. Você, com certeza, é uma das preferidas do Deus do Céu que exultante da sua obra lança-lhe bênçãos e mais bênçãos a cada instante. Quer saber mais? Eu tenho uma baita inveja de você, garota!

(Isa é a minha esposa. Somos uma só pessoa desde mil novecentos e sessenta e cinco. Historieta um tanto quanto ficcionista, meio a meio; houve mais acertos do que erros).
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