DENTISTAS
Contos  |  Sábado, 10 Junho, 2023 8:18  |  Visitantes e Leitores: 1590  |  A+ | a-
Dr. Dirceu Badini
Até há uns poucos anos atrás eu tinha um medo de pelar dos dentistas. Coisa das muitas guardadas no nosso cérebro e ficam lá à espreita. Vivia em conflito comigo mesmo pela insensatez do fato. Se eu comentasse por acaso com algum cliente ou qualquer outra pessoa, ouvia logo uma maçante interrogativa:
 – Um médico ter medo de dentistas? 
Diacho! Sou médico, mas antes e depois disto eu sempre fui e serei gente como qualquer outra. Não considero que isto venha mudar alguma em coisa o meu comportamento. Mudaria alguma coisa lá dentro da minha cabeça? 
Comparando: quando você instala algum programa no seu micro, é reservado um espaço que não pode ser mais mexido. Quando você “deleta” alguma coisa, não a retira da memória gravada no disco de cara, somente interrompe o caminho, a rota indicativa daquele ou outros arquivos. Retira as placas com as setinhas ou as tabuletas indicativas de cada um deles:
– Vai por ali, ó! Mais à frente dobra a direita…. Ou: vá à sala dois; procure a estante número cinco e o escaninho vinte e dois. Você encontrará lá o que procura: “Dentistas (1/2)”. E isto escrito com uma combinação de zero e um. É o path.
Se quiser alcançá-lo mais tarde, o “cérebro” do computador não saberá aonde ir. Se quiser apagar mesmo não tenho certeza se a formatação dá conta. Acho que poderá ser reabilitado com programas especiais. Assim eu imagino acontecer com nosso cérebro milhões de anos à frente (não é uma ofensa, verdadeira heresia o que acabo de fazer ao nosso órgão maior?).
Oh! Imagino que lá dentro nós também tenhamos algum “pente” de memória intocável, alguma ROM que fica como se nada mais quisesse. Aposentada. Quando você menos espera e algum fator externo acontece parecido com aquele gravado na memória não volátil, arma-se um banzé danado, puxa aquela informação e você terá de aguentar o pau ou se maravilhar com o acontecido.
Você acredita que por algumas doenças, não vêm ao caso quais, uma pessoa vê um gato, por exemplo, desenha-o se for hábil e não sabe o que é? Agora, você acredita que se o gato miar ele imediatamente diz o nome do animal? Olhar-se no espelho e não saber quem é? Não acredita? Pura verdade! Pule de dez!
Aliás, li um estudo muito recente sobre a nossa visão e fiquei encantado. Sabe-se que a visão é cerebral e tem muito mais conexões do que somente com o lobo occipital (principal área da visão no cérebro). Há, já sabidas, mais de trinta outras regiões do nosso computador relacionadas com a principal (digamos a CPU) e não somente uma via, a de entrada, mas ida e volta. Assim a visão de uma coisa pode interferir em outra. Deu pra manjar? Não ligue!
Quando você vê uma coisa, aquela imagem é buscada não sei onde e comparada com a que você está focando. Então o cérebro, neste particular, pode se equivocar. Haja vista os retratos falados. Já perceberam quantas discrepâncias? Chegará um dia que descobrirão que cada um de nós vê com pequenas diferenças? Eu enxergo diferente de você? Eu não sei como você já viu e você nunca viu como eu vejo. Como sabermos?
Assisti a uma conferência de um professor universitário. Era uma aula inaugural para curso de pós-graduação. Uma expressão ficou bem gravada lá dentro:
– “A visão é um baita delírio!”
Quem escreve sabe e se injuria a todo momento com algumas palavras escritas com erros que passam despercebidos vezes e mais vezes pela revisão. Quer errar menos? Pede a outro corrigir o que você escreveu ou confie em demasia no seu corretor ortográfico, também fazedor das suas.
De qualquer maneira não é fenomenal este diabinho de pouco mais de um quilo fazer tudo isto? E garanto que ainda não foi descoberto um décimo do que ele é capaz. Precisamos de mais “aventureiros por mares nunca dantes navegados” para ingressar com tudo no funcionamento dessa máquina magnífica. E os antigos egípcios jogavam fora porque não servia para embalsamar: cérebro morto não vale nada. Ah! Também o resto tem o mesmo destino, somente dura um pouquinho mais e, por não ser tão nobre, morre algum tempo depois.
Vi um documentário gravado em película infravermelha obtido passo a passo de um cadáver recente deixado numa mesa do necrotério. Suas partes já frias e todo o ambiente não mais imprimiam o filme, iam desaparecendo e as avermelhadas, indicativas de calor, minguando lentamente até que tudo findasse. 
Tive a sensação de ter presenciado a morte carregando o que podia retirar a cada segundo. Sem pressa nenhuma. Absoluta na sua autoconfiança: aquele já lhe pertencia. O calor representativo de ilhotas de vida não queria deixá-lo ou – admitem muitos – como se a alma agarrasse tenazmente àquele corpo não mais seu abrigo. Outras impressões ficaram. Incrível! Mexe com a gente, sabe?
Pois mamãe estava com aquela doença e sabem o “diagnóstico” do vovô? Fogo selvagem! Somente aquelas duas palavras já assustavam, ainda mais porque ele dizia que ela vinha das matas do Mato Grosso, podia matar e pegar nas outras pessoas. (se estresse matasse naquela ocasião como hoje, vovô nem teria nascido e viveu noventa e três anos, é porque o de hoje era muito diferente daquele estresse dele e de nós todos. To feliz da vida por ainda estar vivo!)
E aí se descambou para que mamãe ficasse boa. Primeiro, banhos de arnica, não sei mais o que de saião com sal; rezas e mais rezas pela Sá Evira; promessas feitas para outros pagarem; remédio receitado pelo farmacêutico por informação de uma pessoa qualquer, enfim, tentava-se resolver o problema de forma caseira. Depois o médico.
Não sei que lá foi visitar a mamãe, mas tascou de cara que aquilo não era fogo selvagem (alívio) e sim dos dentes. Prescrição: pedir ao dentista para extrair todos os dentes de uma senhora de uns trinta e poucos anos.
E desconfio que está aí ainda residente a minha desdita. O dentista ia à fazenda para arrancar os dentes. Lembro-me claramente das várias vezes que colocava mamãe sentada numa cadeira qualquer e ali, na varanda da casa, começava a barbárie. Não me esqueço ainda da imagem da minha mãe com a boca sangrando e com a cara de deprimida.
Dentre essas imagens a única mais ou menos bem definida que eu não me esqueço era o motor do dentista movido pela pedaleira muito semelhante à máquina de costura de mamãe também movida a força muscular.
Agora, eu me pergunto: tinha ou não razão para ficar longe dos amaldiçoados dentista? Todas as vezes que sou obrigado estar com eles, é aquela agonia. Sento naquela cadeira e, à medida que vão mexendo nos meus dentes, vou esticando, ficando retesado e me surpreendo com o traseiro quase no ar, reto e duro como aqueles personagens do truque da levitação. Como sofria!
Consultei um colega não por isso. Achava que era cagão mesmo e assumi. Prescreveu-me ansiolíticos porque já também não conseguia viajar de carro sem o dirigir. Fora do lugar do motorista eu enjoava, mareado pra burro e suado que nem cavalo. Pagava a direção, tudo passava. Pensei: piração! Só pode ser! E era!
Não tenho mais medo dos dentistas, viajo em qualquer lugar no automóvel e ainda vou arriscar de ônibus. Falta e não tenho nenhuma pretensão de fazê-lo, é me arriscar a ter um dente extraído. Ainda bem!

Sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008
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