A CIGANA ALEXIEVA
Contos  |  Sábado, 8 Maio, 2021 10:45  |  Visitantes e Leitores: 1691  |  A+ | a-
Eu sou o editor chefe de uma conceituada revista feminina dedicada à moda e assuntos femininos gerais, com algumas colunas especializadas em culinária, viagens exóticas, artes, ciências e atualidades. Alcançamos um público mais denso na classe média alta e priorizamos a distribuição entre São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Além de jornalistas contratados, temos uns poucos “freelances” de muito boa qualidade. Entre eles, eu destaco um jovem bastante promissor, cujas matérias são sistematicamente elogiadas por numerosas leitoras. Seu nome é Júlio Prado. Tem um faro jornalístico ímpar e, não raro, compro suas matérias apenas pelos títulos que escolhe, sem mesmo fazer uma leitura crítica. Raramente erro com Júlio. Comprei, antecipadamente, uma matéria de Júlio a ser produzida para o próximo número da revista, que deveria versar sobre a República da Bulgária e sua transição de um governo comunista encerrado em 1990 para a república parlamentarista que o sucedeu, com mais detalhes sobre as mudanças na sua principal cidade e capital, Sofia. Custeamos suas despesas de viagem – Júlio não é muito exigente – e, em uma semana, chegou às nossas mãos um excelente artigo, muito bem trabalhado e bastante detalhado sobre Sofia, suas modificações administrativas e novas atrações turísticas, produtos da nova república. Entretanto, a história contada por Júlio sobre sua viagem e o que lhe ocorreu naquela semana foi de tal modo fascinante que preferi publicá-la, em lugar do artigo previamente encomendado. O artigo sobre Sofia foi guardado para uma edição futura da nossa revista.
Júlio, muito detalhista, fez um relato verbal que me tirou o fôlego. Vale a pena conhecer a história que Júlio me contou. Parece mentira.
Meu “freelancer” chegou ao aeroporto na hora do embarque. Para sua comodidade, eu o instalei na classe executiva. Ao ocupar sua poltrona, viu que estava ao lado de uma senhora bastante simpática e cordial. A senhora era muito alegre; tinha uma conversa extremamente inteligente e agradável. Aparentava ter mais de noventa anos. Tinha os cabelos brancos como neve, muito bem penteados. O rosto com poucas rugas, mas o dorso das mãos mostrava diversas pequenas manchas esparsas, provavelmente causadas pelo sol inclemente do Rio de Janeiro, durante muitos verões. Bem discretamente, quando a conversa permitiu, interrogou-a sobre sua idade. Para surpresa de Júlio, a senhora revelou, sem mesmo titubear, que iria completar noventa e seis anos na primavera, a estação do ano que mais a agradava. E acrescentou, sem nenhuma cerimônia, que ainda não tivera o prazer de conhecer nenhuma pessoa da sua idade que mantivesse a memória intacta, tão clara quanto a memória do computador que Júlio usava para fazer o registro do que julgasse interessante. - Ah, meu filho – disse a senhora assim que o avião levantou voo – nada melhor que ter a memória ativa, sempre trabalhando, fazendo o registro da vida! A cabeça não pode parar de trabalhar, nem mesmo por um dia. As pernas já não têm a mesma resistência, é verdade, mas a cabeça está cada vez melhor. Lembro-me de coisas que aconteceram antes mesmo de você nascer, disse sorrindo discretamente.
Estavam viajando para a Europa; Itália, mais precisamente. De onde continuariam ambos, por pura coincidência, para Sofia, na Bulgária. Como jornalista, Júlio não quis perder a oportunidade de registrar algumas boas histórias vividas e contadas por essa adorável companheira de viagem, que conheceu nas poltronas da classe executiva de um voo comercial comum.
- Meu nome? Interrogou a senhora em resposta à pergunta de Júlio. Meu nome é pouco comum. Escolha de pais que gostam de homenagear os antepassados. Eu me chamo Beatriz Guedes de Andrade. Beatriz significa “a que traz felicidade”, “viajante” ou “peregrina”. Adoro viajar e também gostaria de trazer felicidade aos outros, mas não sei se consigo; pelo menos eu tento. Sou relativamente popular no bairro onde moro. Vivo lá desde que nasci. As pessoas me conhecem principalmente porque não deixo de criticar os preços dos supermercados e a política de baixo nível praticada em nosso país. Sou uma crítica muito ácida da infame política das trocas de favores e, claro, da corrupção desenfreada. Lá no Leblon, a vizinhança me conhece como vovó Beatriz. Os parentes e os amigos mais íntimos costumam abreviar para vó Bia, que me dá uma agradável sensação de intimidade e libera a minha língua ferina. Digo tudo o que penso, sem receios ou preocupações. Procuro ser sempre autêntica. Aliás, é o mínimo que se espera na minha idade. De vez em quando dou alguns “pitacos” no Facebook dos amigos, embora não me considere antenada, como a garotada de hoje.
- Posso chamá-la de vó Bia? Assim também vou me sentir mais próximo da senhora. E conversar mais à vontade. – disse Júlio.
- Claro, claro, meu filho. No fundo, eu prefiro ser chamada assim. Torna as pessoas mais íntimas, de verdade! E o seu nome, qual é?
- Eu me chamo Júlio Prado. Sou jornalista. Trabalho por conta própria, para várias revistas do Brasil e de Portugal. Escrevo sobre as coisas do dia a dia. Sou do tipo chamado “freelance”, que o mercado abrevia para “frila”, na gíria jornalística. Ofereço o que as revistas precisam ou pedem e sou pago por tarefa entregue. Procuro publicar quatro ou cinco matérias por mês e assim consigo pagar as despesas. Não sobra muito para poupar, mas também não falta. Estou viajando para uma dessas revistas; querem uma matéria sobre a área histórica e as novas atrações de Sofia. Já li um pouco sobre o assunto. Agora vou ver de perto, tirar umas fotos e escrever o artigo. Deve ocupar três ou quatro páginas da revista, talvez, se o editor não cortar alguns parágrafos, como sempre faz. Mas, como a revista paga o que eu escrevo e não o que publicam, não é tão ruim. Além disso, e para sermos justos, quase sempre o editor melhora um pouco a qualidade da matéria. Os bons editores conhecem a visão do leitor, mais do que a ótica de quem escreve. E precisam tornar as matérias o mais atraentes possíveis; são elas que fazem as revistas serem vendidas.
- É verdade. Eu mesma compro revistas pelos assuntos anunciados na capa! Às vezes folheio um pouco para ver o conteúdo, mas a capa é o grande atrativo. Matéria de capa tem que ser o carro-chefe da revista, não acha?
- Sim senhora. Estou de pleno acordo. Minhas matérias quase sempre “ganham” as capas e isso aumenta a procura pelo meu trabalho. É bom, serve de estímulo. Procuro escrever melhor a cada dia. O computador é um grande aliado nessa tarefa. Uso dois dicionários para fazer a revisão dos textos, antes de entregá-los aos editores. Ainda pretendo escrever um livro. Ficção, talvez. Adoro romances policiais.
- Sabe de uma coisa Júlio; posso chamá-lo pelo primeiro nome? Sofia tem algumas coisas muito interessantes. É a minha terceira visita à cidade. O que mais me atrai nela é a comunidade dos ciganos. A Bulgária tem uma das maiores concentrações de ciganos do mundo. Acredito que são cinco por cento da população. Vou passear alguns dias lá, é verdade, mas, a razão principal da minha viagem é rever uma cigana que conhece muito de astrologia e ocultismo. Chama-se Ilona Alexieva e constitui uma das raras exceções na comunidade cigana. Acredito que essa mulher consegue se comunicar com o mundo extra físico. Parece estranho, mas Ilona consegue explicar coisas sobre o passado das pessoas. E, algumas vezes, revela dados sobre vidas passadas tão bem que faz a visita valer a pena, para complementar os passeios por uma cidade tão atraente. Na última vez que estive com ela, fiquei sabendo que já fui uma iniciada no passado remoto, estudando o hermetismo. Trata-se do estudo e prática da filosofia oculta e da magia associados aos escritos de Hermes Trismegisto. A princípio fiquei preocupada, mas a curiosidade que não me abandona levou-me de volta, para conhecer mais detalhes dessa história. Agora, vou também procurar saber, se Ilona conseguir, detalhes de minha vida anterior à atual. Pode ser interessante, quem sabe? Ela diz que o seu orientador extra físico consegue ler os registros akáshicos.
- Desculpe vó Bia, mas não faço a menor ideia do que sejam esses registros akázitos. O que seriam?
- Akáshicos, é o nome correto. Registros akáshicos, de acordo com diversas correntes espiritualistas, é um conjunto de conhecimentos armazenados no éter, que abrange tudo o que ocorre, ocorreu e ocorrerá no Universo. É simplesmente fascinante. O akasha seria a biblioteca das ações, pensamentos e emoções de todas as almas que tiveram um lugar no planeta Terra e em outros sistemas planetários. Tudo o que ocorre com cada um de nós fica registrado no akasha desde o princípio. Ilona diz que o seu orientador lê os registros das pessoas que consulta. Há histórias de “bastidores” que dizem que reis, rainhas e ministros europeus e asiáticos a consultam sempre que têm dificuldades políticas em seus países. Tive que marcar a visita com antecedência, para ter a garantia do atendimento. Para pessoas comuns como eu, cada consulta precisa ser agendada com dois ou mais meses de antecedência. É pena que em torno de certos ciganos famosos, uma grande parte da população cigana da Bulgária viva em condições de grande pobreza, quase na miséria. Ilona Alexieva sozinha sustenta algumas dezenas de familiares e amigos. Não faz questão de riqueza. Explora seus dons para ajudar os irmãos ciganos.
- A senhora acaba de conquistar um novo aluno, além de um amigo. Gostaria que me falasse mais sobre os registros e as vidas fora do nosso sistema planetário, quando tiver um tempo livre; talvez em outro encontro, quem sabe?
Claro, claro, com o maior prazer. Farei mais do que isso. Minha visita a Ilona é na quarta-feira. Chegaremos a Sofia na segunda. Se tiver uma folga pode me acompanhar na consulta. Ilona não se incomoda com um acompanhante, desde que permaneça em silêncio e siga as orações que antecedem a consulta.
Seria uma oportunidade de ouro, vó Bia! Conhecer o trabalho de uma cigana ocultista da Bulgária. Certamente estarei ao seu lado. Posso mesmo estar diante de uma matéria inesquecível, caso a senhora e madame Ilona não façam nenhuma restrição a isso.
Ilona é bastante alegre, comunicativa e personagem pública em Sofia e, na verdade, em quase metade desse planeta. Certamente estará de acordo em participar de sua matéria, desde que você, claro, a entenda como a mística que aprecia ser. Algumas poucas pessoas, especialmente em Sofia, sem mesmo conhecerem o seu trabalho, dizem que Ilona é uma charlatã, aproveitadora da crença de pessoas importantes. Todos nós temos opositores, não é verdade? Nem Jesus foi unanimidade em sua passagem pelo planeta! Porque Ilona seria?
- Tem razão vó, toda razão, retrucou Júlio. Eu mesmo, não raramente, recebo algumas críticas de leitores que se opõem ao que escrevo. Quando a crítica não vem dos editores. Sei bem o que é isso. É normal e até certo ponto saudável. Desde que seja uma crítica construtiva.
– Ótimo, meu filho. Estamos acertados. Visitaremos Ilona e você verá coisas de que nunca ouviu falar, acredite! Hum, vejo movimentação dos comissários de bordo. Acho que vão servir o jantar. Tomara que tenham peixe no cardápio. Assim, tarde da noite sempre prefiro uma refeição mais leve. E o vinho tem que ser branco! Sempre gosto de um vinhozinho no jantar das viagens. Ajuda a dormir mais tranquilamente. Normalmente custo a dormir; o vinho acelera o sono e faz muito bem. Você gosta de vinho?
- Sem dúvida vó, sem dúvida. Mas prefiro os tintos. Gosto muito de um “carmenére” ou um “pinot noir”, coisas mais leves. Não me agradam muito os vinhos “cabernet sauvignon”, embora alguns deles sejam bastante saborosos. Mas, em geral, são um pouco mais “pesados”. Minha situação financeira me faz preferir os chilenos; têm uma boa relação custo-benefício. E agradam muito ao meu paladar de apreciador médio, não especialista nem principiante.
– Com licença, senhores! Posso oferecer as opções de jantar? – pergunta, muito gentilmente, a comissária. Vó Beatriz optou pelo filé de peixe com molho de camarão e arroz branco. Com a esperada taça de vinho branco que, dessa vez, era francês e, portanto, com um pedigree recomendável, como têm a maioria dos vinhos franceses. Júlio preferiu um “steak au poivre” com batatas coradas acompanhado de vinho tinto, “pinot noir”, já que não serviam carmenére naquela viagem. Ambos acharam o jantar melhor do que a média dos serviços de bordo que conheciam. É um conforto adicional da classe executiva, sem dúvida, com que ambos foram presenteados.
A senhora Beatriz e Júlio compartilharam o mesmo “shuttle” com três outros passageiros. Ela reservara uma suíte no Sense Hotel Sofia, situado no centro da cidade, ideal para turistas interessados em visitar igrejas e fazer os passeios urbanos. Fica próximo ao metrô. Está muito bem localizado na Tsar Osvoboditiel Boulevard, pertinho da sede do Parlamento. É um dos hotéis mais bem avaliados pelos turistas que lá se hospedam. Júlio ficou em outro hotel não muito distante, porém de custos mais baixos. Ao descer da van, mais um lembrete:
– Não se esqueça, vamos nos encontrar às 10:30hs em meu hotel. Daqui seguiremos para a casa de Ilona. Não vá perder a hora, hein, disse vó Beatriz sorrindo, enquanto se dirigia à porta principal, já aberta pelo porteiro do hotel.
Sofia não é uma cidade moderna. Na realidade é uma das cidades mais antigas da nossa civilização. Tem aproximadamente oito mil anos desde a fundação, mas apesar disso, é a capital da Bulgária somente a partir do século dezenove. Mesmo assim, tem bastante história e muitas curiosidades. Requer poucos dias para ser totalmente explorada por turistas. É uma cidade fácil de ser percorrida, seja por transporte público ou mesmo a pé. Seu metrô é novo e percorre os lugares importantes que convidam às visitas obrigatórias. A maioria das atrações turísticas fica no centro da cidade. O idioma oficial é o Búlgaro. Entretanto, a maioria das pessoas tem fluência em outras línguas, dentre as quais predomina o Inglês, salvação dos turistas e guias de viagem.
Ilona Alexieva mantinha uma casa no bairro de Lozenets, vizinho ao centro da cidade e situado numa pequena colina. Esse bairro costumava ser a área residencial dos dirigentes comunistas e continua a ser considerado um dos bairros mais elegantes de Sofia, abrigando um grande número de bons restaurantes e alguns hotéis de alto luxo. Apesar disso, Ilona mantinha essa casa apenas como um “consultório” para receber os seus seletos clientes. Dizia que diariamente entravam e saiam “energias” de diferentes qualidades e quilates e não gostava de residir entre elas. Esse era o seu local de trabalho, como fazia questão de frisar. Preferia residir em outro bairro, no distrito de Vitosha, ao pé da montanha de mesmo nome, em um elegante casarão antigo, remodelado e aparelhado com tudo o que a arquitetura e a tecnologia eletroeletrônica moderna podem oferecer, incluindo redes “wifi” para uso privado.
Ilona não é o tipo da cigana que habitualmente conhecemos; as que usam vestidos longos e folgados, pés descalços, que cantam e dançam nas ruas e outros locais públicos, oferecendo leitura de mãos ou de cartas. Madame Alexieva, como a maioria a trata, guarda das origens apenas os inseparáveis adereços da testa e as largas pulseiras de metal. Suas roupas e calçados provém das boutiques francesas que visita com frequência. Tem uma característica oposta à dos seus compatriotas; talvez adquirida nos anos em que perambulou pelas ruas de Londres, a pontualidade. Começa seus atendimentos na hora marcada. E, como são longos atendimentos, marca poucas pessoas, três ou quatro, no máximo, para consultas por dia, salvo autoridades que, quase sempre, alegam emergências que, na maioria das vezes, são assuntos mal resolvidos da economia dos países que dirigem.
Pontualmente às 10:30hs, vó Beatriz, o taxi agendado e o jornalista Júlio Prado chegaram à porta principal do Sense Hotel. Tomaram o taxi e o motorista, ao perguntar o destino, já imaginava do que se tratava. Simplesmente disse: – Madame Alexieva? Vó Beatriz no mesmo instante respondeu em seu melhor inglês britânico: – Yes, please! Em pouco mais de 20 minutos o taxi parou frente à entrada principal de um casarão bem conservado, cercado de jardins cuidadosamente desenhados, com flores de diversas cores e matizes, muito bem arranjadas e distribuídas. Ao nos aproximarmos da porta, esta foi aberta por um gentil recepcionista que disse: – Por favor, sentem-se. Madame Alexieva a espera! E, seu acompanhante, decerto.
Em dois minutos, outra porta abriu-se e surgiu a imponente figura cigana, trajando um costume bem talhado, sapatos vermelhos de meio salto. Na fronte uma tiara dourada que alcançava metade da testa com uma pedra azul no centro. O punho e antebraço esquerdos estavam cobertos com pulseiras metálicas azuis e verdes. Era Ilona que, com um amplo e carinhoso sorriso acenou para que entrássemos. Tomou vó Bia pelas mãos e disse carinhosamente: – Querida Beatrize, estava aguardando sua visita; quanto prazer. Temos muito que conversar hoje. Vejo que trouxe companhia! Estendeu a mão direita para cumprimentar Júlio e disse: – É um grande prazer, sou Ilona. Vejo que Beatrize tem grande apreço por sua pessoa. Ela sempre vem só; hoje está bem acompanhada. Sinta-se em casa! - Júlio Prado ao seu dispor! Muito feliz em conhecê-la, senhora.
Enquanto nos acomodávamos em confortáveis poltronas, Ilona continuava a conversar: - Sinto uma grande afinidade entre vocês, de muito longa data. Salvo outras necessidades, Beatrize, creio que sua visita de hoje prende-se a essa sintonia bem antiga. Vó Beatriz ficou surpresa e procurou esclarecer a razão da visita de seu acompanhante:
- Júlio é jornalista. E, por coincidência, nos conhecemos no voo para cá. Fizemos boa amizade. Mas ele não é versado em coisas extrafísicas. Veio mais por curiosidade.
Ilona sorriu para nós, elevou as duas mãos, cruzou-as em frente ao peito e disse: - Beatrize, o Universo é bem organizado pelo Grande Espírito Criador. É a sua Obra Maior. Nele existem muitas coisas, físicas e extrafísicas, mas acaso, sorte ou coincidências não existem. Tudo tem uma causa, uma razão de ser, uma necessidade de existir, de ocorrer ou de ser criado. Se você quiser saber o que os uniu, preciso ir ao astral buscar essa informação akáshica, no seu passado remoto. Se vocês não se conheciam nessa vida, tenho certeza de que se conheceram em alguma outra.
Vó Beatriz, entre assustada e curiosa, disse a Ilona:
- Vamos sim, vamos iniciar nossa consulta por essa revelação. Anseio muito saber se nos conhecemos e quem éramos, em outra existência! Tenho uma grande estima por Júlio apesar de conhecê-lo há apenas três dias.
Rapidamente Ilona respondeu:
- Vamos colocar o ambiente em penumbra, ouvir música bem suave e fazer nossas preces ao Grande Espírito Criador.
Iniciou sua prece em búlgaro. Pediu-nos para elevar o pensamento ao Pai e que fizéssemos uma prece em intenção ao sucesso da visita.
Aos poucos o semblante de Ilona começou a mostrar uma aparência mais tranquila, sua respiração tornou-se mais lenta e suave, precedida apenas por um murmúrio: – Façam silêncio por 10 ou 15 minutos; procurem relaxar; podem dormir se conseguirem. Ilona fechou completamente os olhos e adormeceu. Pouco mais de 10 minutos após adormecer, Ilona começou a mover-se calmamente, abriu os olhos e, em tom de prece agradeceu ao Grande Espírito Criador pela abertura do portal do astral, a subida até as camadas mais sutis e o acesso e leitura dos nossos arquivos akáshicos. Em seguida disse: - Há muita coisa sobre vocês. Passei mais de cinco horas fazendo a leitura do que vou contar agora. Júlio não se conteve e um pouco assustado, disse:
- Mas apenas se passaram pouco mais de dez minutos; como pode ser isso?
Ilona sorriu e explicou:
- Ah, meu esbelto amigo. O tempo no astral não é igual ao tempo do nosso planeta. Aqui o tempo é apenas uma convenção. No astral é uma dimensão. Uma não tem nada a ver com a outra. Estando no astral, você pode dar uma volta inteira na Terra em alguns minutos do tempo daqui. No astral superior as coisas transcorrem na velocidade do pensamento. Mas vamos ao que vimos por lá, continua Ilona, após tomar um gole de água.
Beatrize, na sua última vida antes dessa, nasceu em Nice, na França, em 1808. Viveu 82 anos e morreu naturalmente em 1890. Acompanhou de perto os grandes eventos ocorridos no século dezenove, especialmente o surgimento da obra de Allan Kardec. Você viu as mesas girantes e presenciou o lançamento de “O Livro dos Espíritos” em 1857. Seu nome era Camile Loizou e você teve uma irmã apenas dois anos mais nova. Chamava-se Lucille Loizou e faleceu vitimada por uma forte hemorragia durante o parto de seu único filho Jacques Loizou, o sobrinho que você criou e que na encarnação atual está aqui conosco, o Jornalista Júlio Prado. Os dois na encarnação atual nasceram no Brasil, com forte inclinação pela França, tanto nos costumes quanto na política. Júlio foi seu sobrinho e filho de adoção; criado com muito amor. Vocês foram aproximados agora, pelo que você chamou de coincidência e eu chamo de providência do Grande Espírito Criador.
A revelação de Ilona jogou Beatriz e Júlio nos braços um do outro, com os olhos cheios de lágrimas e os corações cheios de amor. Em verdadeiro êxtase, Júlio tomou a iniciativa de chamar Beatriz de mamãe, embora sua mãe biológica nessa existência ainda esteja viva e saudável.
Ilona continuou sua narrativa: Os dois foram enviados para reencarnarem no Brasil devido ao destino dessa nação: ser o centro de irradiação da Doutrina Espírita que Beatrize conhece bem e procura ensinar a quem queira estudá-la. Júlio tem no seu espírito as informações de identificação e aceitação das verdades, sejam quais forem. Vem daí a profissão de jornalista. Mas, logo vai ter a curiosidade de conhecer a Doutrina codificada por Allan Kardec e vai escrever bastante sobre ela. Sua mediunidade vai aflorar em pouco tempo. Vai também, essa pátria abençoada, ser o celeiro do mundo. Vai diminuir a fome dos irmãos onde esse terrível flagelo ceifar vidas. E acrescenta: - O Brasil está, nesse exato momento, atravessando uma conturbada fase de higienização ética, moral e política. Leva algum tempo para encerrarem-se esses ciclos cármicos coletivos. Mas logo será um país extremamente importante no contexto mundial, pela afabilidade, paciência e hospitalidade do seu povo. É o que vocês conhecem como o país do futuro. E vocês dois estão inseridos nesse contexto. Cabe a ambos cumprirem cada um a sua missão.
Vó Beatriz pigarreia, toma a palavra e diz com a sinceridade habitual: -Ilona, eu vim saber sobre os rumos da política brasileira. Mas acho que já estou satisfeita com o resultado da consulta. Não tenho mais perguntas. Talvez Júlio tenha alguma coisa a perguntar?
Júlio, antes habituado a ter sempre uma pergunta a ser feita, dessa vez estava ainda anestesiado pelo que presenciara. Agora sabia bem o que eram os registros akáshicos e o que continham. Sabia que o mundo é dirigido por leis imutáveis e que Deus, o Criador, preside tudo o que acontece no Universo. Júlio sabia, sobretudo, que sua vida seria outra, à partir dessa viagem à Bulgária.
– Bem, vamos ao café que nos espera na sala ao lado, disse Ilona, levantando e dirigindo-se à porta semiaberta.
Após o café, geleia e torradas, vó Beatriz preencheu o cheque que trazia na bolsa e entregou-o ao recepcionista que a acompanhou junto com Ilana até a porta. Despediram-se todos muito carinhosamente, enquanto uma lágrima solitária escorria dos olhos de Júlio. Ao abraçar o jornalista, Ilona colocou sua mão sobre o coração de Júlio e escorreu-a pela manga esquerda do seu blazer, num gesto de apreciação especial.
O taxi os esperava na saída do luxuoso consultório de madame Alexieva. Ilona abraça vó Beatriz efusivamente e diz que a casa está às ordens, sempre aberta para os amigos. Querida Beatrize, estamos sempre esperando a visita dos que queremos bem. Não se esqueça dos amigos ciganos da Bulgária. Venha para tomar um café e trocar ideias. Tenho sempre relatos de teu interesse pessoal.
Em seguida abraça Júlio:
Júlio, novo amigo! Foi um prazer conhecer tão jovem e florescente jornalista. Fique mais um pouco em Sofia para conhecer as belezas da cidade e quem sabe, escrever alguma coisa sobre o nosso modesto trabalho com o mundo extrafísico.
A volta ao hotel foi mais rápida do que a ida e a conversa foi dominada pela lembrança dos poderes de Ilona Alexieva, a cigana ocultista, mística e íntima do mundo extrafísico. O motorista, sem entender uma única palavra do português que seus passageiros falavam, observava o entusiasmo da conversa e arriscou a célebre pergunta:
- Did you like Madam Alexieva revelations?
- Yes, she is fantastic! – respondeu Júlio imediatamente, com grande entusiasmo na voz.
O motorista sorriu levemente e apenas pareceu computar sua estatística pessoal acerca da impressão dos visitantes sobre Ilona.
O taxi deixou Beatriz no Sense Hotel Sofia e seguiu com Júlio em direção ao Central Hotel, mais simples, classificado com quatro estrelas, e mais em conta, para as diárias pagas pela revista.
Chegando ao hotel, Júlio sobe e pede uma taça de vinho tinto. O tempo está frio, início de primavera e o termômetro da portaria marca 15 graus centígrados. Júlio liga a calefação, tira o blazer e ao colocar a mão no bolso, encontra um pequeno cartão branco com um número de telefone escrito. Nada mais. Seu primeiro pensamento voltou-se para vó Beatriz, mas o absurdo logo veio à sua cabeça; Ilona foi a imediata sequência de pensamentos. Lembrou-se da carícia de Ilona escorrendo a mão sobre seu braço. Vó Beatriz teria deixado o nome junto ao número e entregue o cartão em mãos. Ao sair do hotel tinha apenas a carteira no bolso e o tablet na mão. Após rever mentalmente todas as ocorrências do dia e em grande dúvida sobre se ligaria ou não, o espírito curioso e aventureiro de Júlio falou mais forte. Pegou o telefone da cabeceira. O sinal de linha livre foi instantâneo e, quase automaticamente, Júlio discou o número escrito no cartão, ansioso por ouvir a voz do outro lado da linha.
- Júlio, querido. Que bom que você ligou. Achei que não iria ligar mais. Fiquei triste. Venha me ver. Você é um cativante homem, não deve ter mais de 30 anos, bonito e educado. Precisamos nos conhecer melhor – ouviu Júlio, assustado, sem dizer uma palavra.
Júlio, com o coração batendo forte, perguntou intrigado:
- Como sabe que sou eu? Eu não disse uma palavra.
- Ora meu bem, disse com seu costumeiro sotaque, esse número é secreto. Só serve para meus clientes muito especiais. Depois que desligarmos, o número será trocado. Nem mesmo você poderá usá-lo outra vez. Espero você à noite, Depois das nove horas. Não se atrase muito, está bem?
Júlio, ainda cheio de dúvidas, respondeu com voz meio trêmula:
– Sim, sim; está bem! Estarei aí, pontualmente.
E Júlio terminou sua narrativa:
Ilona me esperava em seu “consultório” vestida com uma curta camisola transparente, que deixava ver seu bem torneado corpo como uma silhueta contra a meia luz dos abajures. Seus longos cabelos negros soltos sobre os ombros e as costas realçavam o belo e bem maquiado rosto. As lindas coxas apareceram quando cruzou as pernas. Estendeu-me uma taça de champanhe e sugeriu um brinde ao nosso encontro. Após o primeiro gole e o primeiro beijo, perguntei-lhe: – E a visita ao mundo akáshico? as revelações?

- Ora, meu querido. Eu faço os meus clientes felizes. Digo o que vieram de tão longe para ouvir. E sou paga por isso – disse no meio de sonora gargalhada.
– Quer dizer que você não é ocultista?
– Sou, sim, querido. Eu oculto a verdade das pessoas. Eu sou cigana, querido Júlio. Tenho sangue cigano. Leio mãos, cartas e olhos. Vi no seu olhar que teríamos uma noite maravilhosa. É tudo o que eu quero. E quero muito. Esqueça o misticismo, os registros akáshicos, os fenômenos extrafísicos e as histórias que invento para satisfazer os clientes e fazê-los encontrar a felicidade que julgam estar aqui.
Os beijos que se seguiram deram início a mais tórrida noite de amor que já tive em toda a minha vida, contou meu freelancer, em uma estrondosa gargalhada. – E você ainda me paga pra isso! Você é o meu editor favorito – acrescentou.
Essa história vendeu a edição inteira da revista. Júlio a escreveu em duas horas, a meu pedido. O artigo elaborado sobre Sofia repousa no fundo da minha gaveta. Talvez um dia seja publicado. Quem sabe?
 
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