MINHA VELHA CADEIRA
Crônicas  |  Quarta-feira, 19 Janeiro, 2022 9:16  |  Visitantes e Leitores: 1310  |  A+ | a-
Dr. Dirceu Badini
Estou momentaneamente sem a minha velha companheira de muitos anos. Não é uma cadeira nada especial. Como eu também me considero e sem querer melindrá-la, é tão simples, do tipo de escritório, com assento e espaldar de espuma e recobertos com um tecido comum. Nada extraordinária, nenhum trono real, mas com o passar do tempo, ambos estamos necessitando de alguns reparos.
Pensei de momento em trocá-la. Comprar uma outra nova. Mas aconteceu uma coisa que me abalou e podem considerar-me ligeiramente desvairado. Não vou ficar brabo, pois até hoje ainda não sei qual é o limite entre estas duas situações: ser ou não ser. Imaginei-a tristonha por esse deslize. Quem sabe se não ficasse triste e, como alguns humanos, não gostasse de ser comparada com seres inanimados. Resolvi: não a trocaria. Poderia, mas não queria. Ficaria com a mesma de tantos anos acompanhando seu parceiro desde a clínica até os dias de hoje.
Mais ainda. A Isa já providenciou uma outra na qual estou sentado e escrevendo essas asneiras. Chegou aqui a minha neta, a doce Alice e também notou que eu não estava mais sentado naquela que ela já estava mais do que acostumada a me ver e, às vezes, me fazia companhia. Jazia ela num canto. Indagou porquê. Tive de explicá-la que a outra estava precisando de conserto…
Não se conteve. Pegou a antiga e me disse que a deixaria bem próximo de mim. E assim agiu. A velha cadeira encostou-se às minhas pernas. Olhei para ela e tive um tremendo remorso. Não deveria ter feito esta grande afronta à minha amiga e servidora de tantos anos, pelo menos, enquanto ela ainda aqui estivesse. 
Se não estou delirando, quantas vezes me presenciou alegre, eufórico mesmo, passando até os limites da humildade quando um cliente ou um parente ia lá para somente me dar uma boa notícia. Quem de nós dois não se lembra daquela mãe aflita que deu graças a Deus porque eu disse que o seu filho não estava sofrendo do mesmo mal que ela. Não tive coragem de dizer-lhe que a situação dele era muito pior e de fato aconteceu, pois tinha um tumor cerebral.
Tenho certeza de que, se assim for como penso, deve lembrar-se do pai que se ajoelhou e me beijou a mão por eu ter, a tempo, suspeitado de que o seu filho estava com um tumor no cérebro e se recuperou, graças ao diagnóstico precoce, o que não aconteceu com o outro. Não quero nunca mais passar por tamanha situação. Ela presenciou, após a sua saída, eu sentar-me e, talvez, ambos chorássemos de alegria. Emoção maior não poderá haver. 
Susto tomei susto quando estava saindo, após um dia mais de trabalho e encontro à porta do elevador o mesmo menino, agora um rapagão, mais uma vez com a cabeça sem cabelos. 
– De novo? Perguntei-lhe espantando, angustiado.
– Não, doutor, vim aqui para lhe dizer que passei na faculdade e me rasparam a cabeça. Tudo maravilhoso agora! 
Tenho guardada uma foto com comovente dedicatória da sua formatura ao lado dos pais.
Por isto e por muito mais coisas, eu não vou colocar a minha cadeira na aposentadoria e jogá-la num brechó. Ali ninguém saberá quem foi e tenho certeza de que ela também jamais fará nenhuma coisa para se engalanar, como sói acontecer com os ditos seres inanimados. Sobre ela, eu consegui ter uma família cujos galhos já me superaram, para meu orgulho e se ela pudesse exprimir também faria o mesmo. Trabalhamos duro mas com prazer ajudando gente e tendo gente nos ajudando, como sempre deveria ser o mundo das Animae Nobilis.
Minha cadeira está baixada numa oficina para sua recuperação. Como um elemento feminino, tem vaidades que devo respeitar. Virá com nova indumentária, maquiagem, remoçada. Ocupará seu lugar de sempre e me ajudará escrever, ouvir música ou fazer nada. 
Acreditem: estou numa fase de não ter aptidão para redigir qualquer coisa. Acontece com outros? Sou ainda noviço neste ofício e não sei avaliar, mas ela já me deu um sopro de alento transmitindo ao meu cérebro esta crônica que não me custou mais do que uma hora, se tanto. Daria para ficar aqui escrevendo sobre a minha cadeirinha de seis rodinhas, alavanca para ajeitar a altura já danificada e outras coisas mais por muito mais tempo.
Estou com saudades dela. Agora me digam, se puderem: por que a Alice disse que a minha velha cadeira deveria ficar junto de mim? Será que anjo possui a faculdade de escutar ou de perceber nuanças que os pecadores já não mais conseguem? Estou muito confuso. Mas somente tenho uma certeza eterna: não me vou desfazer nunca da minha cadeira, esteja ela como estiver. Acabaremos juntos. É isto!
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