E SE NÃO FOSSEM AS DROGAS?
Crônicas  |  Terça-feira, 26 Outubro, 2021 13:35  |  Visitantes e Leitores: 1476  |  A+ | a-
Decio O. Elias
Caminho diariamente por essas ruas, alongando meu trajeto para o trabalho, apenas para ver se na área da cracolândia, dentre as dezenas de viciados, encontro meu pai. É inacreditável; como pode alguém culto, trabalhador, com diploma universitário, bem situado profissionalmente, num estalar de dedos mudar os rumos da sua vida e de toda uma família até então bem estruturada e feliz? Como pode alguém, assim, sem mais nem menos, deslizar pela rampa que leva ao abismo das drogas? Vez por outra ouço sua voz, antes clara e sonora, agora rouca. Raramente o vejo, mas fico satisfeita quando isso acontece. A última vez que o vi, tive vontade de falar com ele, mas não tive coragem. Maltrapilho e sujo, era a caricatura daquele homem que eu conhecia e amava. Sua fraqueza diante do vício deixou a todos nós, minha mãe, eu e meus irmãos, em situação precária. Inicialmente, por problemas no emprego, meu pai passou a beber mais do que o socialmente aceitável. Logo após, experimentou a maconha e, quase ao mesmo tempo, induzido por novas e falsas amizades, iniciou-se no uso da cocaína. Foi rápida a sua imersão no universo do crack; a princípio esporadicamente, até que, perdendo o emprego e o amor próprio, sem dizer nada a nenhum de nós, saiu de casa sem olhar para trás.

Mamãe e eu – quase diariamente – pedíamos que buscasse um tratamento, uma internação, um aconselhamento que fosse, para o seu resgate desse submundo infame que corrói as entranhas das pessoas. Tudo em vão. O melhor que fazia era, talvez para nos deixar contentes, dizer que ia pensar no assunto, nos poucos momentos de sobriedade. Nunca fez isso. E pensar em tratamentos parecia tão pouco. Mas, representava muito para a libertação de alguém das teias do vício. Seria o início de uma longa jornada de retorno ao mundo que condena sem julgar, critica sem conhecer, estigmatiza, discrimina e repele sem compaixão ou piedade.
As dificuldades financeiras eram a regra em nossa casa. Eu e meus irmãos, ambos mais novos, assim como mamãe, fizemos grandes e indispensáveis mudanças de hábitos. A escola pública, eterna vítima dos maus tratos políticos, foi a maior dificuldade que enfrentamos. Greves, salários baixos e sempre atrasados, falta de material escolar e de alimentação fazem da escola pública a última e penosa escolha de quem não tem alternativas. Aos 15 anos de idade, eu e minha mãe, habituadas a cuidar da casa e da família, passamos a ser as provedoras do sustento necessário. Mamãe cozinhava e vendia as “quentinhas” que meus irmãos entregavam e eu, trabalhava à noite, meio às escondidas, como arrumadeira de motel. Mudamos para uma casa mais simples e reduzimos bastante as nossas despesas.
Apesar de culparmos as fraquezas de papai pelas nossas dificuldades, sem falar sobre o assunto percebi que todos compreendíamos que ele fora, também, uma vítima das mazelas sociais que ainda nos afligem. As tentações que batem à porta de todos nós, em algum momento das nossas vidas, fazem com que alguns sucumbam ao seu chamamento. E cai-se em desgraça. Eu o perdoei. No meu íntimo, o amor que sentia por ele era maior que a decepção deixada por sua ausência em nossas vidas. Com o tempo a decepção foi evanescendo, embaçando, até confundir-se com uma pequena cicatriz deixada em cada um de nós, no passado distante.
Lembro-me bem, da noite em que vi um vulto do grupo de dependentes contorcer-se, gemendo e sussurrando palavras sem sentido. Assustada, afastei-me depressa. Na verdade, eu não queria saber o que se passava, ou, mais claramente, não queria saber com quem aquilo se passava. A partir daquela noite não vi mais meu pai no grupo de viciados. Nem ouvi sua voz rouca. Aos poucos fui mudando de trajeto para o trabalho, até que um dia, tive um impulso de voltar à praça, abordar um de seus assíduos frequentadores e, com o coração em aperto, perguntar por meu pai. “Ele se foi”, disse uma rude e pesada voz, como se tivesse terminado um diálogo que mal começara, sem definir com precisão o que queria dizer. E nunca mais passei pela praça do vício. Até hoje não sei se a minha atitude foi correta. A saudade não me abandona.



 
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