HINO NACIONAL
Contos  |  Quinta-feira, 7 Setembro, 2023 9:21  |  Visitantes e Leitores: 1169  |  A+ | a-
Dr. Dirceu Badini

Eu devia ter uns dez anos quando fui para a escola primária. Na minha infância, lá na roça, somente havia uma e ficava há uns dois quilômetros. Assim, a gente era matriculada com esta idade ou acima, pois teria de percorrer aquela distância para ir e voltar “de a pé”.
Além do mais, a escola oferecia ensino até a terceira série. Depois disso, lápis, caneta, lousa e “lápis de pedra” eram trocados por foice, enxada, candiar carro de bois ou o que fosse e substituíam o seu eventual desejo de prosseguir nos estudos alterando o seu rumo por caminhos mais rudes, mas nem por isso menos honrosos. Se desejasse continuar, teria de ir ao Grupo Escolar no Valão do Barro. Lá, sim, você sairia “sabichão” com a quinta série muito bem administrada pela Profa. Leda e o Prof. Waldir.
Na escola do Sobrado as professoras, D. Aracy e D. Iná, esforçavam-se ao máximo para compartilhar todos os seus conhecimentos para sermos mais úteis ao mundo caminhando célere de encontro ao desenvolvimento.
D. Iná era professora formada e de ideias mais atualizadas. Naturalmente, ambas tinham de seguir as normas dos famigerados currículos escolares nem sempre organizados por gente do ramo, mas vá lá! D. Iná logo, logo iniciou festinhas, organizar teatrinhos e todos os parentes eram convidados e ficavam atentos às apresentações dos “astros e estrelas” nascentes. 
Pois é! Foi num desses eventos. Eu teria de declamar uma poesia e toda a minha fobia de falar em público se agarrou em mim e nunca mais me deixou desde então. A minha ansiedade ainda é tão grande gerando em mim um sacrifício imensurável, sufocante ao me colocar numa situação dessa. Não vem ao caso aqui mas vou narrar a minha desventura quando pela primeira e última vez subi num palco improvisado para falar uma poesia. Foi assim:
As festinhas eram uma coisa nova e aparecia gente pra burro. Lembro-me que naquele, meus avós sentaram na primeira fila de carteiras. Vovô, com as suas botinas marrons, braço cruzado ao peito e uma perna ligeiramente distendida, alternando ambas ansiosamente. Parecia prever o meu drama. 
A minha fala era a seguinte: declamar um poema cujo título era o Hino Nacional. Enquanto isso um grupo de alunos e alunas cantava ao meu lado e ligeiramente afastado para me deixar de cara à mostra.
O palco era o estrado relativamente pequeno onde antes alojava a mesa da professora. Não era tão grande, mas para mim sozinho ali em cima mais parecia um cadafalso enorme e traiçoeiro. O quadro-negro, daqueles móveis, de madeira onde se podia escrever de um lado e de outro, fora improvisado como coxia, aceitemos como tal. A D. Iná ficava ali atrás para nos socorrer, com a cola à mão. Poderíamos compará-la ao ponto do teatro. Ela era isso mesmo. Estava ali para aquela função.
Nós, eu a turma ao lado iniciaríamos juntos, pois foi muito ensaiado para que o hino e o poema recitado terminassem praticamente juntos. A turminha da cantoria disparou. Então, como bem treinado, eu tacava a mão direita com força sobre o coração e soltava a voz.
Eu só me recordo da primeira fala: “Brasileiros!” Pronto. Trancou tudo. Um branco total. D. Iná socorria, dava aquele providencial empurrão tal se faz com carro enguiçado e novamente eu capengava. Afogava o carburador mais adiante e tome enguiço.
E assim foi. A turminha da cantoria se mandando. Eu ainda não havia saído da primeira estrofe e eles já estavam lá em “Ó Pátria amada,
idolatrada”. E tome o ponto mandar cola. E foi assim: uma verdadeira penitência de quaresma. Eu ainda não estava nem no meio e o coral já se encantava com o “florão da América”.
Vovô de cara comigo. Vermelho que nem pimentão. Já nessa altura ele mais parecia pedalar uma bicicleta de tanto que puxava uma perna e espichava a outra. Deveria estar desesperado com o mico que eu estava pagando. Era muito pior. Pagar mico é mais suave, mas você gaguejou ou você engasgou era motivo de chacota da turma inteira nos dias que se seguiram à festa dos outros, ta claro!
Eu era considerado com bom futuro, dentro dos parâmetros da época, apesar de haver queimado meu filme. Por isso D. Iná forçou a barra com mamãe e vovó para eu continuar estudando (elas se opunham por sair de casa). Tal qual se faz hoje com a molecada do futebol, eu deveria seguir os estudos.
Como são volúveis os costumes. Lá atrás os melhores alunos eram incentivados a estudar, os pais ficavam orgulhosos e mais pobres, pois, além do filho não colaborar para a renda familiar, trazia gastos extras. Hoje também os pais ficam maravilhados quando um técnico de futebol ou de qualquer outro esporte incentiva para o menino ou menina dedicar-se aos esportes e os pais ficam dispensados da “facada” extra e ainda fatura algum junto com os prodígios. Com todas as razões e direitos.
Plagiar Cícero mais uma vez (petulância!): O Tempora! O Mores! E viva para Catilina que nos deixou uma invejável prole!
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