TROCAR FUBÁ
Crônicas  |  Quarta-feira, 29 Junho, 2022 11:00  |  Visitantes e Leitores: 1433  |  A+ | a-
Dr. Dirceu Badini

Trocar fubá. Trocar por quê? Troca-se sempre uma coisa por outra ou por dinheiro. Realmente não lhe diz nada se você nunca viveu numa fazenda e na minha época. Qualquer um por lá saberia “traduzir” que aquela pessoa estava ali para trocar o milho em grãos pelo fubá. Agora bote atenção (como costumeiramente dizia o Pai): um cara lá chegar e se sair com essa:
– Excelentíssimo senhor João Badini: estou aqui mui respeitosamente para lhe solicitar o obséquio de fazer a troca, nos trâmites normais, destes grãos de milho devidamente secos pela farinha mais fina possível advinda do seu beneficiamento!
Piração total. Todo mundo presente, disparado, receoso de gente ofendida por cachorro danado. E se, preventivamente, já não caíssem de cacete em cima do infortunado.
Ainda hoje me recordo haver no mínimo uns cinco moinhos como o do vovô no trecho do Córrego dos Índios até aonde pude ir. Na divisa das terras do vovô com a Tia Zizica há ainda hoje uma enorme barragem feita de pedra e argamassa (e mão de obra grátis, como sói acontecer na época da escravidão) exclusivamente para o nível da água ganhar altura e movimentar a roda do engenho. Fazer um treco grande daquele só para moer o milho é porque ele era indispensável para a época. 
E se pagava quanto pela troca? Aparentemente nada: trocava-se um pelo outro no mesmo volume. E aí estava escondida a mutreta. Havia dois pequenos vasilhames conhecidos como a quarta e a meia-quarta. A gente enchia a quarta de milho em grãos. Despejava-a na moega e assim procedia até o final. Feito isto, media-se a mesma quantidade em fubá e despejava-se no saco onde estavam os caroços. Pronto! Negócio fechado e dos bons, pois ambos ficavam satisfeitos com o resultado.
Vou revelar como se pagava: uma quarta de grãos depois de moídos rendia, em volume, muito mais do que a original e desde que o fubá fosse colocado bem de leve, despejado com a pá bem baixa e sem socar. Fofinho. Assim o dono do moinho lucrava. E bastante! 
É possível alguém já ter manjado o trambique ou até ter conhecimento dele. Talvez, até fosse a norma; a paga. Agora, como fazer fubá fininho socando milho no pilão? Impossível. Café, arroz poderiam ser pilados e até se pilava o milho branco misturado com a palha para retirar sua película e manter o caroço inteiro para a canjica da Semana Santa ficar mais macia e fácil de mastigar. E lá iam juntos o leite, amendoim torrado, coco, cravo, canela e por último o prato e a colher. Canecas, canecões e copos também valiam e bem-vindos.
Basicamente o moinho era constituído de uma roda d’água horizontal e em cima do seu comprido eixo, misto de madeira e ferragem, impulsionava uma peça circular feita de uma pedra cheia de buracos e dura pra cachorro. Ela rodava sobre uma outra igual e fixa. 
O milho caía por um orifício existente na móvel e era quebrado até o mais fino fubá pelo atrito das duas pedras do moinho. Mó? O que era isso? Ninguém as conhecia como tal. Por lá diziam que aquelas pedras eram de lava de vulcões.
Vez por outra, Vovô tinha de picotar aquelas pedras para restaurar as centenas de cavidades nas duas, pois com o tempo elas enchiam com o pó do milho e o rendimento diminuído. O velho ficava tiririca quando a gente não examinava bem e colocava na moega milho novo e não perfeitamente seco. Aí sim, a desgraça era total. Tome martelada para retirar a borra (martelo especial tipo uma picareta em miniatura) e reabrir as frestas onde o milho era atritado e se partia. Aprendi cedo: quando eu fosse o escolhido para trocar fubá, pedia antes para ele verificar o milho. Macaco velho…
A água para movimentar as rodas motrizes vinha por um canal escavado na aba do morro há uma distância de uns duzentos ou mais metros. Era a “banqueta” canalizando a água e onde estava toda a maquinaria havia um desnível de mais de dez metros, calculo. Quando uma delas estava funcionando a outra tinha de estar parada pois a quantidade de água fornecida não era suficiente para mover as duas ao mesmo tempo. Presumo que o primeiro a construir a “banqueta” pensou somente no moinho para fubá. Mais tarde se utilizou também para moer a cana e serrar madeira e, já no tempo do “Jão”, também funcionava, à noite, um dínamo para iluminar a casa. 
Quando havia algum vazamento naquele canal ou qualquer outra eventual manutenção, vovô barrava toda a água no início da sua captação e papai e outros empregados esgotavam a água do inferno da roda para pescar. Moço! Como apanhavam peixes! Deveriam estar ali para papar a sobra do milho certamente caída lá dentro. Gastava-se um dia para esvaziar o poço, mas o fim era gratificante: pegavam bagres, cascudos, traíra, mentiras, acarás, perna-de-moça, lagostim, caranguejos, mais mentiras e maiores ainda dias depois quando ninguém mais poderia provar o contrário. Como os peixes cresciam, caboclo velho!

Sexta-feira, 7 de dezembro de 2007
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