O BEM-TE-VI E AS ABELHAS
Crônicas  |  Segunda-feira, 23 Maio, 2022 8:16  |  Visitantes e Leitores: 1357  |  A+ | a-
Dr. Dirceu Badini


João Badini. Meu avô, meu Tudo! Foi uma pessoa muito interessante. Nervoso, ansioso, muito ordeiro, honesto, trabalhador, amigo, mas tinhas lá também suas manias. 
Uma ocasião cismou criar abelhas. Não tinha necessidade nenhuma e havia muito mais coisas interessantes para fazer, mas queria criar abelhas. Arranjou umas caixas, capturou alguns enxames e os colocou próximo à porta da cozinha, junto de umas pedras e do córrego que descia e em baixo de uma grande goiabeira. Lugar ideal, pois ainda não havia as abelhas africanas, mais agressivas.
Naquela época ninguém conhecia técnicas como as de hoje, como colmeias em caixas moduladas, respeitando-se o espaço abelha, separação entre o ninho e os favos de armazenar mel, melgueiras com a cera pré-formada, etc. Nada disso. Colocavam as abelhas ali dentro de uma caixa qualquer e elas que se virassem.
Um dia percebeu que bem-te-vis estavam deitando e rolando em cima das queridinhas abelhas. Pousavam nos galhos da goiabeira e mandavam ver. Vovô não achou nada engraçado e ordenou que eu ficasse ali espantando os pássaros. Pô, cara! Não adiantava nada. Eu gritava com eles, voavam para o pé de jamelão ou para as mangueiras e dali a pouco estavam lá de novo se deliciando, enchendo o papo.
Falei com o vovô que a tarefa estava difícil e não íamos conseguir espantar os bichos. Não tinha nenhuma intenção de fazer fofocas, nem de criar animosidades entre os bem-te-vis e o vovô, pois  naquela ocasião também acreditava que eles comeriam o enxame todo. Depois a bronca vinha para cima de mim e do Guilherme que, não tendo a principal responsabilidade, estando ali somente para dar uma força, escapulia de vez em quando, ia brincar e o “bestão” aqui ficava colado qual um espantalho correndo atrás de bem-te-vis.
 Vovô então resolver matar os ladrões. Lei de Talião! Pegou a espingarda Trochada, segundo ele, legítima arma espanhola, calibre vinte e quatro, carregou o cartucho e foi lá dar cabo dos felizes bem-te-vis, até aquele momento. Onde o bichinho estava pousando e na melhor posição de tiro, acertaria também a colmeia e por isso ele teve que ficar de cócoras naquele terreno em declive. Posição instável para atirar com uma arma pesada como aquela e não deu outra: foi o tiro roncar e vovô cair de pernas para cima, devido o retrocesso da arma. Vovó e eu que estávamos observando começamos rir e eu, com medo de uns pitos, fui para detrás da porta. Aquilo parecia uma cena de um filme de comédia-pastelão.
Ah! Se fosse mesmo um filme, Vovô! Eu o voltaria até esse ponto e depois continuaríamos. Eu agora, já na minha idade atual, entraria na cena. Sairia detrás da porta e ajudaria a levantar-se. Sei que você tinha bico de papagaio, ciática, esses trecos de coluna. Quando chegasse lá, você já xingaria todos os xingamentos do seu vasto repertório: praga dos diabos, desgraçado, raio dos infernos, f.d.p e haja espaço para relacionar todos eles. Subiríamos o morrinho e sentaríamos naquele enorme banco que existia na varanda, na saída da porta da cozinha da casa velha. Na frente dele, debaixo do assoalho do paiol, naquele barranco, você fez um monte de buracos para as galinhas botarem ou chocarem seus ovos. Bem bolado!
Você estaria ainda muito tenso, nervoso, calado, vermelho qual um camarão. Olhar fixo no chão. Abriria a camisa para observar a esfoladura provocada pela coronha em cima da clavícula e depois retiraria do bolso um maço de cigarros “Yolanda 500” ou “Astória”. Eu acenderia um palito de fósforo e você, já com o cigarro na boca e com as mãos em forma de concha para proteger a chama, estivesse ou não ventando – um hábito antigo – acenderia o cigarro e tragaria rapidamente. Vez por outra, segurava-o entre os dedos polegar e indicador e com o mindinho bateria a cinza e a deixaria cair no chão, estivesse onde fosse. Nunca o vi colocar uma cinza no cinzeiro, não é? Pra que cinzeiro? Tanto chão por aí! Quase certo, eu também fumaria um cigarro porque você mesmo me permitiu quando nós fizemos aquele conserto no dínamo do fordeco. Tá lembrado? Lógico que tá!
Ai, explicaria que os insetos e as aves já existem na natureza há milhões de anos, muito antes dos humanos e sempre foi assim: passarinho comendo inseto e pássaros maiores comendo os menores. Se eles ainda existem até hoje é porque aprenderam a conviver com a natureza e a evolução. Mantêm-se o equilíbrio, entende? 
No caso específico das abelhas, todo o enxame é renovado a cada sessenta dias e aquelas abelhas que o bem-te-vi estava comendo morreriam de qualquer modo dentro de uns poucos dias, porque, como campeiras, já estavam cumprindo a última etapa do seu ciclo vital. Comidas ou não, não mais existiriam em pouco tempo. Até que passarinhos estavam colaborando com a evolução. As abelhas que faziam o maior trabalho na colmeia nunca ainda saíram de lá para nada e estavam protegidas. Manjou?
Você então já estaria mais calmo e me perguntaria pelo bem-te-vi, provavelmente já arrependido por tê-lo matado. Prego uma mentirinha:
        - Deu nas canelas! Deve estar até agora com os ouvidos zunindo do berro da trochada! Você esqueceu de colocar chumbo no cartucho, homem de Deus! Deu tiro de pólvora seca! Que “micão”, véio!
Você então olha para mim, fita-me sério por uns segundos e, em seguida, começa a rir, gargalhar. (Não garanto se acreditou ou não). Balança o tórax para frente e para trás, passa a mão no rosto, pelos cabelos ralos e cinzentos, eleva ou abaixa queixo e alternadamente bate com os pés calçados com aquelas botinas de couro amarelo e já gastas no chão ressequido.
Agora eu saio da cena. Você do lado de lá e eu do lado de cá, como ainda hoje acontece. Você continua rindo, rindo muito! Câmera em close fechado. Filme rodando e você lá gargalhando convulsivamente. Nunca o vi rir tanto, homem! Não haverá a palavra FIM nesse filme. A câmera continua fechada e rodando, rodando. Depois de alguns segundos, a cena entra num “fade out” lento, muito demorado e esmaece, esmaece… Apaga!
Então eu volto para detrás da porta e, escondido, vou chorar.

PS: Este filme nunca mais será exibido.
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