CONTRATO DE COMODATO
Crônicas  |  Sexta-feira, 7 Janeiro, 2022 11:58  |  Visitantes e Leitores: 1451  |  A+ | a-
Dr. Dirceu Badini

Antes mesmo de você ser gente, logo após a conjunção dos gametas e você ainda é uma célula, já tem compromissos e responsabilidades. “Assinou” um documento, um contrato ou o que seja, onde você é o contratado e o contratante…. O contratante…. Sei lá! Pode ser Deus, Alá, a Natureza, a Terra. Também não fará nenhuma diferença quem possa ser.
Nele há todas as condições para você ser gerado, viver, reproduzir e morrer. Lá estão cláusulas, artigos, itens etc. Tudo que deve saber existir num contrato. Há letras grandes e as miúdas que geralmente não são lidas com atenção. E seja quem for o contratante ele está prestes a lhe passar a perna, mas não há saída. É como estes softwares que se você não aceitar as condições, aborta, não instala. Sem opção, pra que ler?
Então você será tratado como nunca visto em outro lugar. Será encaminhado ao útero ainda como um montinho de células sem nenhuma definição. Quando lá chegar, o deslumbre! Um enorme salão enfeitado e todo acarpetado de vermelho, com veias e arteríolas fininhas e fofas constituindo um aconchegante tapete, protegido por forte muralha de músculos vigorosos, ausência de luz para não o incomodar e somente sons surdos, suaves e naturais. Onde quer que você escolha para repousar, tudo lhe será oferecido: alimentação, oxigênio, retiradas de produtos impróprios, um verdadeiro exército para defender-lhe de intrusos, ausência de gravidade, temperatura amena e constante…. Enfim, o essencial para se desenvolver bem depressa, forte e vigoroso. Não pense que estão investindo em você graciosamente. A cobrança já está a caminho.
Naquele paraíso você nem se dá conta de que está crescendo. Pula de um lado para outro, dá pernada, cabeçada, chupa dedos, sorri, faz tudo com a certeza de que assinou algo inusitado e também passou a perna em bilhões de anos de evolução. Não quer outra vida! Jamais! 
Mas, num belo dia, tudo se transforma. Como numa tormenta, você é comprimido, esmagado em ondas cada vez mais fortes. Você será expulso daquele paraíso. Você ainda desconfia de que irá para outro lugar ainda melhor, mas reluta em abandonar o útero. Não tem jeito! Sai de uma maneira natural ou é sacado de qualquer modo, na marra. Seria esta a versão da expulsão de Adão e Eva do Paraíso? Será que eles ainda estão sendo expulsos até hoje?
Quando você emerge pro mundo de cá, já desconfia que não fosse assim o presumido, mas se esqueceu de ler as letrinhas miúdas que lá estavam. (Os marmanjos de hoje ainda cometem o mesmo engano. Não se aflija!) O primeiro impacto é a luz forte nos olhos virgens de luminosidade. Sons horrendos que você nunca ouvira invadem e castigam seus ouvidos e falta-lhe oxigênio. A primeira golfada de ar arde, dói muito e queima suas vias e pulmões que até então nunca precisaram de qualquer esforço para conseguir o ar da vida. Choro! Nunca antes você necessitou chorar, mas se não o fizer de maneira espontânea, vai levar umas boas palmadas na bundinha. As primeiras bordoadas já começaram aí. Você tem de iniciar a vida realmente sofrendo. Acabou-se o paraíso. Lembre-se que você tem de partir logo a procura de uma teta para sugar o seu alimento, não mais haverá placenta para lhe fornecer tudo a tempo e à hora. Nunca mais, lembre-se disto. Nunca mais terá o útero de volta, o melhor aconchego de toda uma existência, como guarida! Pelo menos por um tempo variável. Outro lhe estará reservado no momento final.
Também está escrito lá que você não será jogado ao deus-dará Haverá uma mãe, uma família para lhe cuidar. Você veio ao mundo com um monte de instintos, mas não está independente dos adultos e assim será por um bom pedaço da sua vida. Não haverá mais interferência tão abrupta na sua existência, salvo na época da puberdade. Também está escrito. 
O contratante vai mudar você. Transformações profundas tanto no aspecto externo como no interno. Órgãos que ainda não tinham praticamente nenhuma função serão estimulados e preparados para a única missão válida, de acordo com o contrato: reproduzir, passar adiante os genes e manter a espécie viva e eterna. Tudo foi feito para explodir no grande evento.
Machos e fêmeas serão burilados e se transformarão no seu aspecto externo e principalmente no seu cérebro. Tudo agora leva aquela geração para um único e soberbo acontecimento. A atração sexual alcança o pico máximo. Não há freios eficientes. Isto acontecido, você vai continuar na sua decadência. Sem piedade. O contratante não se interessa o que vai ser da sua vida daqui para diante. Não vai mais interferir, não vai mais orientar. Mas, está lá também escrito, vai matar-lhe. Você já cumpriu parte do seu contrato de vida e será substituído. Lentamente.
Vamos analisar alguns itens do contrato. Quando se inicia a produção e a sua diferenciação para você se tornar um ser vivente, você necessita de uma coisa chamada célula. Dentro destes “ões” delas existem os cromossomas e neles os genes. Isto hoje já não é segredo para ninguém. Mas o contratante – sacana – colocou lá na ponta dos cromossomas ou de alguns deles uma estrutura que podemos considerar como o nosso relógio biológico. Vou colocar a contragosto o seu nome: telômeros. Eles têm como principal função fiscalizar a reprodução celular. Ficam ali de olho nos genes, responsáveis pela produção de proteínas, operários delas que são as substâncias que nos diferenciam. Sou diferente de você, por quê? Porque temos proteínas diferentes. Manja? Por isso, há rejeição nos transplantes. Quando fazemos um transplante o organismo receptor encara aquilo como um invasor, cai de pau pra cima do infeliz e o rejeita. E ele está com toda razão: intruso, não! Se não fosse isto…. Ah! Que beleza! Não? Não seria, mas isto é assunto muito longo.
Então aqueles dedos-duros dos telômeros estão ali para fiscalizar os genes na confecção das proteínas. Parece-me que os genes estão sempre maluquinhos para modificar alguma coisa. Mutação. Carece de explicação? O ambiente lá, naquela magnífica fábrica de produtos químicos vitais, não é dos mais cordiais. Os telômeros são muito solicitados e eu acho que entram em estresse cedo, cedo e acabam suicidando, pois em cada divisão celular alguns deles ou partes não estarão mais presentes. 
Não sabia que há suicídio de células? Pois há! Várias células, quando o pau come e não encontram ambiente próprio para a sua sobrevivência, não aguentam o arrocho e literalmente se suicidam. São cheias de frescuras. É! Morrem! Há na retina algumas cheias de chiliques. Acham que já estou com poucas células cerebrais para dizer isto? Tô nada! Principalmente as células do sistema nervoso são as mais sensíveis e sem muita personalidade. Esquentou o ambiente…. Puf! Caem duras! Mas não apodrecem. Como eu poderia dizer…. Secam. E aí o Deus nos acuda! Lá vem o Corpo de Bombeiros ou então outros regimentos celulares, verdadeiros garis, para a limpeza. 
Os genes, que a gente já ouve falar tanto, são negligentes, às vezes irresponsáveis. Não sei se estou imputando a eles um adjetivo pouco apropriado, mas são uns malandros. Nessas noites passadas, quando estava escrevendo mentalmente este texto, eu achava que os telômeros, como todo fiscal, são uns chatos para os fiscalizados. Estes estão quase sempre querendo modificar a construção das proteínas a que estão submetidos por força da genética. Então…. Você faz isto, você faz aquilo e assim por diante. Não pode haver substituição. Quem faz a proteína X, sempre há de fazê-la. Nada de passar aquela tarefa aos outros. E o ambiente é pesado em relação ao telômero.
 – Pô! Ô HT23Z! Quantas vezes tenho de dizer para colocar um nitrogênio neste lugar? Você não tem que inventar nada. O que vai fazer com este enxofre? T4NJ2: olhe bem esta ligação da valência: oxigênio precisa de duas e você somente colocou uma. Vai ficar instável. Cacete! Tenho sempre dizer a mesma coisa? HL32: olhe este elo da valência da hidroxila? Tá frouxo! Aumenta a energia do elétron do oxigênio, senão esta merda vai desgarrar e sair por aí como radical livre e os putos lá de fora vão nos intoxicar com tanto selênio, vitamina C, zinco e toda esta imundice. Se você gosta, pode ficar com tudo! Esse povinho tem de aprender a não tomar tanto remédio, “catiço”! Já num falei umas trezentas vezes que iodo serve para tireoide? Nós, imbecil, pelo amor de Deus, somos responsáveis pelos cabelos! (Em tempo: os genes são denominados por uma combinação de letras e algarismos. Desculpem-me se alguém já sabia. Não quero chover no molhado. E usam muito palavrão. São muito antigos e ingênuos; daquela época que puta-que-pariu ainda era elogio. Quem me contesta?).
Quando a célula se divide para formar duas outras, os telômeros não serão mais os mesmos, ou melhor, os “rabinhos” (nosso reloginho biológico marca nossas horas assim: “sacrificando” o rabo. Bastante coerente!) deles vão diminuindo à medida que a reprodução vai se processando. Já não têm a total capacidade de monitorar os genes, as proteínas e as células subsequentes já não serão as mesmas. Pra pior! Tudo planejado para nos lascar! E tem mais: isto ocorre com todo seres vivos, animais ou plantas. Eu já não disse que Deus não fez os seres vivos com tanto capricho como o universo? Tô mais maluco ainda? Já ganhei do Dr. Ivo Kelis?
Deu pra perceber porque mudamos com a idade? Não estou referindo ao aspecto externo, mas num todo. A cada divisão celular, nós nos modificamos um pouco e para pior em relação ao que fomos antes: envelhecemos. Mas é um processo lento e não sentimos, vamo-nos adaptando…. Esqueçamos toda esta bobagem. Vamos viver e tocar o barco, mesmo porque ainda não temos domínio destas maravilhas que acontecem a todo o momento nas nossas entranhas. E espero, com toda pureza do meu caráter, que nunca poderemos estar à altura disto.
Bem. Daí pra frente cada um tem livre arbítrio do que fazer da sua vida restante. Já reproduziu? Cumpriu praticamente oitenta por cento do contrato. Mas as células continuarão a se desenvolver e em cada geração delas, você será um pouco diferente. Insisto nisso. Até um dia elas não terão mais como lhe sustentar. Aquelas células produzidas já não são suficientes para lhe manter vivo e o defender. Então você morrerá.
É chegado o momento de cumprir a última cláusula do contrato assinado. 
Não levará nada daqui. Devolverá tudo, tudinho ao contratante. Sem observar atentamente você assinou um contrato de comodato. Nada lhe pertence. Pode usar tudo do que necessitar neste planeta, mas na hora do último ato nobre, quando todo ser vivo se iguala, terá de devolver ao contratante. Na hora “do pegar pra capar”, você vai deixar tudo aqui. Até a sua alma (para aqueles que nela acreditam) será a primeira a dar no pé! Agora você voltará sozinho para o útero da Terra e lá entregará a quem quer que seja tim-tim por tim-tim tudo que auferiu na sua passagem por aqui. Molécula por molécula, átomo por átomo será revertido, incorporado à Mãe Terra que os distribuirá aos novos seres ainda viventes, animais como nós ou vegetais. Assim a vida continuará…. Até quando? Enquanto houver seres humanos com a consciência dos de hoje, eu não sei. Se continuarem assim, acho que Alice – minha netinha querida e a perpetuação da minha vida futura albergada nos seus genes – não terá um fim que merece na sua plena ingenuidade e vigor de hoje. Mas os lobos da espécie humana são os mais vorazes. Não têm limites.
Enquanto dinheiro, poder, ignorância, egoísmo e falta de ética forem as principais metas a serem almejadas por eles, eu não acredito num futuro muito longo para a permanência da vida neste planeta. E nos outros? Pois é: fiquei deprimido quando assisti a uma entrevista de um pesquisador – astrônomo – de nome internacional, respeitado e que não deve, por estes qualificativos, falar besteira: não acreditar em outras civilizações fora da Terra com maior desenvolvimento do que a nossa, simplesmente porque antes que quaisquer umas delas atingissem este grau de capacidade tecnológica, já se destruíram.
Estamos chegando lá? Ou lá já estamos e nem percebemos? Que loucura! Isto não é ficção.
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