MEU PIÃO DE BRAÚNA
Crônicas  |  Quarta-feira, 17 Novembro, 2021 11:03  |  Visitantes e Leitores: 1494  |  A+ | a-
Dr. Dirceu Badini

Havia um colega na escola primária que tinha um pião torneado e de braúna. Uma lindeza, sonho de consumo de qualquer moleque daquela época. Não me lembro o seu nome, mas nunca vou esquecer como se chamava seu pai: “sô” Moreno, quem esculpiu o pião no torno. 
Eu era vidrado para ter um igual, mas “sô” Moreno não faria de graça e nem eu poderia pedir nada. A gente era educada para não pedir, aceitar se lhe fosse oferecido, mas pedir, não!
O pião não era muito grande, não! Pesado, lisinho e na parte superior, todo cravejado como tachas douradas e produzia um som surdo, leve zumbido. Quando rodava, não dava um saltinho sequer, ficava no mesmo lugar girando, girando e somente fazia movimentos pendulares suaves e delicados. Quando parava, corria uma longa distância, graças ao seu peso e inércia. Não ficava dentro da roda quase nunca e, mesmo se ficasse, por azar, as tachas protegeriam-no das bicadas. Maravilhoso!
Na época da escola o brinquedo preferido dos meninos era jogar pião. Fazia-se uma circunferência no chão com um graveto ou mesmo com o bico do pião, ficávamos do lado de fora ao seu redor, cada um com o seu pião “engatilhado”, seja, fieira enrolada, seguro firme pela mão direita, pronto para lançar.
O primeiro jogava seu pião na roda. Girava, girava e depois, quando a força diminuía, tombava e ainda com a energia restante, corria pelo chão. Se saísse dos limites internos daquela linha, tudo bem, jogava o segundo e assim por diante. Se algum não conseguisse caminhar o suficiente e ficasse preso, serviria de alvo para os outros. Em sequência, todos poderiam tentar com o seu pião bicar aquele que ficara lá e o infeliz só seria libertado se algum outro o empurrasse para fora. E a brincadeira reiniciava.
Gosto de marcenaria como passatempo. Aliás, tenho um monte deles e não faz muito tempo ganhei um torno já velho, mas funcionando perfeitamente. Brotou da minha memória imediatamente a lembrança do pião de braúna. Vou fazer um pra mim, mesmo que mais de cinquenta anos tenham passado. Vou ter meu pião torneado de braúna e mais, eu mesmo vou fazê-lo, não será como o do filho do “sô” Moreno que ganhou já feito. Eu vou fazer um pião!
Arranjei um pedaço de mourão de cerca lá no sítio, limpei a parte externa já meio alterada pelo tempo, retirei a parte central, acertei com a enxó, cortei um pequeno pedaço, adaptei na placa do torno e iniciei o trabalho. Cada pedaço de madeira que voava do corte do formão, já pressentia aquele pião maravilhoso, pesado, dorminhoco que ficava paradinho no mesmo lugar, balançando leve e indolentemente e depois aquele galope impressionante como um alazão puro-sangue. Ele, sem dúvida, seria um daqueles!
Enfeitei-o com duas linhas paralelas feitas com o corte do formão na junção das curvas, quase no meio. Depois de pronto, retirei-o do torno, preguei as tachas no alto, coloquei-o em cima da bancada e fiquei de longe admirando. Estava como eu o imaginava e queria. 
Peguei um pedaço de cordinha torcida, dei nós nas pontas e iniciei o processo de enrolar, mas tive o cuidado de não prender a fieira depois do nó, porque poderia travar e o pião voltar na canela da gente e fazer um estrago. Eu ainda me lembrava disso.
 Depois de toda a parte inferior estar coberta pela linha, segurei-o na mão direita e com o bico para cima, arremessei-o com força como se vai jogar uma pedra e ao mesmo tempo puxei fortemente a fieira para trás, para dar maior impulso ao movimento de rotação do pião. Antes disso tudo, olhei para todos os lados na busca de alguém que poderia observar. Sabe como é, nego de mais de sessenta jogando pião, camisa de força no bruto e envia rápido pra Santa Lúcia que a coisa tá feia! Esclerose braba!
Foi só tocar o chão e o festival de besteiras e loucuras teve início. O pião estava doido, possuído! O endemoninhado saltava mais que burro selvagem, partiu como um louco dando cada pinote de dar inveja àquelas gazelas à frente das leoas. Bateu no muro, partiu como um desatinado para cima de mim, dei um salto rápido e ele passou debaixo das minhas pernas como um desvairado, sentou os cornos numa velha lata de leite encostada num canto e continuou fazendo tudo o que um verdadeiro pião não deveria fazer. 
Mas eu ainda tinha esperanças: quando ele perdesse a força, cairia e correria uns dez metros ou mais, não ficaria nunca dentro da roda para os outros bicarem. Puro engano! Quando parou, caiu duro no mesmo lugar como se tivesse sofrido um infarto fulminante. Eu tinha feito um “antipião”, mas estava satisfeito com a obra mesmo assim. Ele era o meu pião torneado de braúna! Achei-o até mais engraçado, mais alegre do que o outro. Como um filho: sem nenhum defeito.
Peguei-o no chão, passei a mão para retirar umas terrinhas agarradas, peguei um pedaço de jornal velho e limpei uma titica de galinha, afaguei e o coloquei no bolso direito da minha bermuda. Dobrei a fieira e a coloquei junto, tendo o cuidado de deixar as pontinhas penduradas do lado de fora para balançar, tal como fazíamos naquela época. Olhei o bojo formado do lado externo, retirei o calçado, pisei a terra quente pelo sol e dei algumas passadas. Perecia não estar neste mundo. Flutuava!
O meu coração, dentro da velha caixa, estava explodindo de emoção, ora se comportando como um bailarino clássico, leve, compassado, elegante nos seus movimentos e ora como se fosse um saltimbanco moleque, dando pinotes, virando cambalhotas ou até mesmo plantando bananeiras. As coronárias? Cada uma desse tamanhão, ó! Preguiçosas, dorminhocas, no maior porre, ô mané!
E os velhos olhos azuis tinham agora um brilho incomum, uma alegria exuberante e uma candura imensurável como os daquele menino roceiro, capiau, que sempre foi livre, feliz. Por um momento, percebi que a vida não me devia mais nada e nem eu a ela tampouco. Nós estávamos quites. A paz reinava soberba!
 Amém!
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