A VOLTA
Contos  |  Sexta-feira, 14 Abril, 2023 18:12  |  Visitantes e Leitores: 1471  |  A+ | a-
Dr. Dirceu Badini
Queria um dia voltar no tempo. Não daquele jeito: “voltar aos dezoito anos com a experiência de agora”. Além de ridículo, será horrível viver naquele mundo onde você é o único diferente dos demais. Desolador e angustiante.
Imagino o que não sofreram Galileu, Copérnico, da Vinci, Newton e tantos outros gênios mais, tendo que viver e suportar a burrice imperialista da época. Quanta dificuldade saber das coisas e não ter ninguém para colaborar ou mesmo consolá-los por não poderem ir adiante, ou melhor, fazer de tudo para não conseguirem seus intentos. Burrice transcendental, como me parece alguém já ter dito.
Eu queria voltar no tempo para ficar lá uns minutinhos só e ir somente a um local sem expressão nenhuma no contexto nacional ou mesmo regional. Queria ir à fazenda onde fui criado... Não! Ir a um pequeno espaço que ficava logo abaixo da casa sede e nos fundos do pomar de mangueiras. Ali no Corguinho.
Voltei lá, não faz muito tempo. Quase não o reconheci. Pequeno, espremidinho e roscofe, praticamente sem toda aquela aguaceira. A pedreira magnífica, onde eu brincava com Guilherme, no sopé da cachoeirinha, que teimava em se esconder atrás de enormes pedras desagregadas e deixadas soltas ali por tempo inimaginável. Tudo muito pequeno. Tudo muito reduzido para que a minha memória agora me recordasse um dos melhores momentos vividos.
Então, estudando facetas curiosas da evolução do nosso cérebro, li que a memória infantil pode mesmo relembrar muito mais tarde de tudo em escala bem maior do que o real. Não me disse por que e também não quero imaginar ou necessito entender. 
Descer, subir naquela montanha de rochas como fazíamos todos os dias, represar um filete de água, colocar uma bica e instalar uma roda feita de dois pedaços de talos de inhame, vê-los girar e girar, aspergindo gotículas d’água pro ar e produzindo aquele som característico de muitas pedrinhas caindo na água. Ver o sol resplandecer naquelas minúsculas gotas de cristais líquidos, ver algum beija-flor ou bem-te-vi as aproveitando e abrindo as asas para serem molhadas pelos nossos moinhos.
Queria voltar lá para mirar de novo o embiruçu. Majestoso, composto de um tronco único e mais três grandes hastes subindo céu adentro e nem imagino até aonde iam parar. Não via o seu final, talvez mais uma magia da percepção infantil. Não mais existe e talvez não fosse tão parrudo assim como o vejo agora e me impressionavam tanto. Talvez um dos meus símbolos de majestade.
Ah! E a patativa? Todos os anos nessa época de primavera o casal voltava à sua morada provisória anterior. Fazia ali o seu ninho das próprias radículas do bambuzal. A fêmea na sua tarefa programada para por e chocar os ovos e o macho, pousado na pontinha do mais alto bambu, soltava seu canto, delimitando seu espaço consagrado. Guardião atento. Não sei mais como era, somente uma leve percepção de uma afinada flauta jamais ouvida.
Eu queria estar lá para ver os inhames, os pés de coités sob a sua sombra nós nos recolhíamos para amenizar o veranico, queria estar lá para alisar seus frutos de casca dura, lisos e geometricamente perfeitos. Queria sentar-me novamente sob sua cobertura amiga e observar de longe os giros dos não-sei-quantos moinhos rodando e rodando.
Não me queria ver ali mais. Não queria ficar ali mais tempo do que o necessário para ver como era aquele pedacinho de terreno onde tanto brinquei. Gozei dos melhores momentos da minha vidinha apenas iniciando, sem me importar com o futuro, sem me importar o que aconteceria ao mundo, sem me importar com nada que não fosse arranjar algum brinquedo para mais um dia ocioso.
Realmente, agora revendo as imagens alegres, flamejantes e mesmo enganadoras de um cérebro em desenvolvimento, não tenho tanta certeza do meu querer, de estar lá novamente. Encontrarei a pedreira enorme, lisinha de tanto que as águas do Corguinho a poliram nos milênios que escorregou por ela? Encontrarei lá a patativa? Encontrarei lá a porca e seus leitõezinhos que faziam um estrago geral nos nossos engenhos? Verei Vovô? Vovó? Nadir?
Na verdade eu não queria ir lá para ver pessoas, não queria ir lá para me ver e sentir o que sentia naquela época. Queria estar lá para uma constatação da minha memória. Mas, se eu os visse, todos os meus familiares já partidos, e não fossem como eu os guardo na minha memória mutável?
Não quero ir mais. Decidido. Deixe estar como ainda concebo. Foi tudo lindo, sabe? Foi tudo maravilhoso. Ainda bem que essa vontade é produto e implicância do meu cérebro ainda em desenvolvimento. Nossos cérebros são tão jovens em relação à evolução humana. Têm muito o que aprender, sem dúvida.


Sábado, seis de setembro de 2008
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