SUICÍDIO DOS ÓCULOS
Contos  |  Sexta-feira, 31 Março, 2023 19:20  |  Visitantes e Leitores: 1410  |  A+ | a-
Dr. Dirceu Badini

Aquele cliente entrou na sala de entrevistas, como sempre, alegre, sorrindo, de bem com a vida. Dei uma rápida olhada na tela do monitor e verifiquei nunca ter tido problemas maiores, somente ajuste nas lentes. Rotina, mas indaguei se havia alguma outra coisa preocupando-o.
 – Não; nada. Estou aqui porque o “meu óculos suicidou”, disse-me sempre sorrindo.
Fiquei por um momento embasbacado. Nunca ouvira isto antes. Mas gostei da piada. Continuou:
 – Ele estava joia pra mim. Mas, já tem mais de quatro anos que estava com ele e no dia que resolvi marcar o exame aqui, vou atravessar a rua correndo, ele pula do meu nariz, cai, piso em cima e para não deixar dúvidas quanto ao falecimento, um carro atropela e vira cacos. Também já estava todo arranhado, soltando a tinta, pernas bambas e as lentes manchadas. Por isso eu ia trocá-lo por outro novo. Acho que ele deve ter ficado magoado comigo e cometeu tal desatino. O que o senhor acha?
 – Hehe! É! Pode ser!
Aquilo ficou na minha cabeça. As minhas – sei lá quantas – sinapses estavam no maior banzé, afogadas em adrenalina, serotonina, dopamina e tantas outras “inas” e davam um show lá na cachola. Uma farra! Rave da melhor qualidade! 
Volta e meia eu me lembrava do que me disse. Óculos pirados! Pô! Quando a gente fala em suicídio, até onde meus parcos conhecimentos podem permitir, pensa-se em depressão grave. Pode um par de óculos sofrer de depressão? Ah! Meu Deus!
Resolvi então, buscando entender o gesto tresloucado dos ditos, reavaliar o relacionamento com os meus. Eles me acompanham há quase trinta anos. Estamos perfeitamente integrados e não nos separamos – mesmo daqueles que já não estão mais na plenitude da sua força, aposentados – guardando-os para uma emergência. Aliás, sou tão cativo deles que até parece coisa de “pancado da cabeça”. Tenho um par no rosto – claro – outro no sítio, um no carro e outro numa maleta de couro que sempre me acompanha. Tara? Alguém pode pensar assim, mas eu sem eles não sou nem a metade de mim. Se já não sou tanta coisa assim, então…
Quando tomo banho são os primeiros a entrar. Passo-lhes no corpo todo o mesmo sabonete que uso, enxugo-os com lenço de papel (lenço nada: papel higiênico) e os coloco delicadamente sobre a pia do banheiro. Quando termino, antes de me vestir, eles já estão nos seus devidos postos e alegres. Imagem nítida, brilhante, nem uma manchinha qualquer para perturbar a visão daquelas coisas rotineiras, mas agora possuídas de um brilho incomum. Se for dormir, eles serão também os primeiros a se ajeitar, sempre colocados de maneira que suas lentes nunca ficam em contato direto sobre a mesa de cabeceira. Espicham as perninhas, barrigas avantajadas pra cima, repousam com os bordos da moldura apoiados e puxam suas palhinhas. Tranquilos, tranquilos!
Pela manhã pulam direto para seus postos de observação, abraçam-me, um breve cafuné e me fazem enxergar as belas montanhas do lado oeste que emolduram e enfeitam ainda mais esta cidade que escolhi para viver com a Isa, meus filhos e meus amigos. Maravilhosas, deslumbrantes manhãs já me proporcionaram. Mesmo quando há aquela bruma cobrindo a serra, eu posso observar a nuvem baixa galgar altura lentamente pelo calor gerado pela implicância do sol nascente e descortinar as pedreiras imponentes. Até mesmo nas pesadas chuvas de verão eles me proporcionam visão da majestosa cachoeira poeirenta e espumante lá da Fundação. Tudo muito lindo! Precisa é haver tempo para enxergar e talento para descrevê-las.
Mas, retornando a apreciação da desdita daqueles do cliente, fico na dúvida. O fato de ele ter dito que estavam velhos, desconjuntados e outros tantos impropérios pode ter atingido em cheio seu ponto fraco, seu órgão de choque. Considerando que eles também já poderiam sofrer de alguma depressão, fobias e outros trecos mais, é possível admitir-se que realmente deram cabo à vida.
Alguém pode jurar de pés juntos que eles não eram narcisistas? E quando perceberam que seriam trocados por que já estavam furrecas, cheios de imperfeições? Seriam substituídos por outro parceiro mais jovem e belo? Na cabeça dos adoradores de Narciso tudo isto deve baratinar muito, deve fazer alguns deles perder a razão. Esquizofrenia? Pouco provável, pois não me foi relatada nenhuma alucinação visual em tempo algum. Mas só pode ter sido algo seguindo por este rumo de raciocínio. E se foi um acidente? Não! Acidente não pode ser, senão eu não teria assunto para escrever este texto. 
O rapaz vai trocá-los. Tenho certeza de que a alma penada do velho suicida estará de plantão. Sabe? Quando se trocam as lentes, às vezes, o usuário precisa de algum tempo para se adaptar. Fica tonto, pisa alto, perde o equilíbrio. Eu juro que eles vão aproveitar a oportunidade, encarnar no novo queridinho e dar um baita tombo no seu ex-amigo. Tomara, na visão deles, que ele caia de cara no chão, quebre o nariz e o novo intruso idem.
Vão então convocar e enfileirar todos os rejeitados, suicidas ou não, pegar o estandarte, taróis e repenique e sair saracoteando pela avenida com um monte de caveirinhas de óculos chacoalhando os ossinhos, rebolando a bundinha seca e acompanhando o refrão: Ô! “Esquindô”! “Esquindô”! (Como os óculos pouco mudaram da sua forma original com o passar dos anos e por força atávica, o carnaval deles ainda deve ser na base do “esquindô”).
(Acho que hoje estou em crise de novo! Onde já se viu imaginar e escrever tantas asneiras! Meu inconsciente deve estar no maior porre, esperneando com tudo que está acontecendo e ainda vai acontecer com este novo velho Brasil. Apesar da irresponsabilidade eventual, ele anda meio preocupado! Têm uns caras no poder atualmente que muito bem poderiam estar enquadrados mais ou menos nisto que escrevi. Ou quase! Esconjuro!).
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