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Terça-feira, 21 Fevereiro, 2023
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Luiz Corrêa de Menezes & Decio O. Elias
A região? Bem na fronteira de Mato Grosso do Sul com o Paraguai, numa cidadezinha chamada Jaguavera, com seus pouco mais de cinco mil habitantes, contando o padre, o prefeito, o delegado e o médico, nessa ordem de importância e hierarquia social, onde estive registrando dados para o censo periódico e pude ouvir a mirabolante história que os mais velhos juram ser verdadeira e os mais jovens chamam de lenda. Pouco importa se história ou lenda. Uma lenda nem sempre é criação de alguma mente mais fértil ou da ignorância de grupos de pessoas. Ela pode ser, sim, uma versão embelezada - ou nem tanto - da verdade, quer dizer, da história. Como pode, também, ser produto de crenças fantasmagóricas usadas por seres amedrontados para justificar suas manias ou seus próprios medos ou até para aterrorizar crianças. A história contada pelos anciões da cidade me fez permanecer em Jaguavera por mais alguns dias, em busca de todos os detalhes disponíveis. Fiquei muito curioso com a história de Luna Serena, cidadã de Jaguavera onde nasceu, viveu e morreu, provavelmente com mais de cem anos de idade. Carola, fanática, beata, nenhuma destas denominações realmente define aquela religiosa que, católica desde a infância, percorreu uma vida como qualquer outra pessoa e, que além da vida religiosa, estudou todos os graus até ao nível máximo superior de música. Ao chegar ao auge como mestre eximia violinista, viveu das aulas particulares que dava a quantos a procurassem, inclusive das cidadezinhas vizinhas, acompanhada dos trabalhos de um lar formado depois de um casamento que rendeu um casal de filhos. Conciliando a música "professoral" com as atividades do lar, nunca abandonou o estudo religioso e sua missa dominical.
Como a maioria dos cidadãos de Jaguavera, Luna não tinha nacionalidade conhecida, se brasileira ou paraguaia. Na cidade há casas tão fronteiriças que o quarto e a cozinha estão no território brasileiro e a sala e a varanda foram construídas em terras paraguaias. Entretanto, nacionalidade é o que menos importa aos cidadãos daquela pacata região. São todos chamados "brasilguaios" pelos raros forasteiros que, como eu, se aventuram adentrar aquele território binacional por alguma razão, quase sempre a trabalho do governo ou em busca de refúgio por crimes cometidos. Quase todos falam um portunhol nativo e usam o único cartório de registros existente na cidade, em território brasileiro.
Segundo conta a lenda, os anos se passaram, seus cabelos pratearam até que a viuvez bateu à sua porta. O baque emocional suplantou, provavelmente, o baque financeiro, relativamente equilibrado ao longo do tempo. Vida que segue, mulher estudiosa e inteligente, Luna Serena assume o leme e toca o barco diante das ondas que lhe parecem, ora bravias, ora apenas agitadas. Religiosa fiel a Deus, Jesus e a Todos os Santos que existem na Igreja Católica a quem com extremado fervor, orava diariamente em glorificação desde Santa Adelaide a São Zacarias, percorrendo todo o alfabeto canônico. Acontece que uma tragédia, um grave acidente de trabalho, ceifou a vida do seu filho. O abalo sofrido foi de tal ordem que, contam todos, afetou o equilíbrio mental de Luna que nunca mais voltou a ser quem era e o que era. Introverteu-se completamente, caminhava sem rumo pelas ruas da cidade, a cabeça sempre baixa. Raramente dirigia a palavra a a alguém. Nem mesmo o padre a fazia conversar, e quando, por razões desconhecidas resolvia falar dizia palavras ou frases desconexas, sem nenhum sentido. Passou a viver reclusa em casa e muito raramente era vista na cidade, a não ser na missa dos domingos, quando de violino em punho acompanhava o canto do coral - apenas cinco vozes - da pequena igreja local, compromisso a que - religiosamente - nunca faltava.
Alguns anos depois, numa terça-feira e debaixo de uma chuva torrencial, a filha de Luna entra assustada e chorosa na igreja e ansiosamente pede ao padre que corra à sua casa imediatamente, para ministrar o sacramento da extrema unção à Luna, que agonizava no leito. O sepultamento ocorreu na manhã seguinte; os religiosos, grande percentual dos habitantes de Jaguavera, compareceram em massa para se despedir da sua "bruxa do violino", como ficou conhecida na cidade, depois que mergulhou no silêncio ainda em vida.
A missa do domingo seguinte foi a mais concorrida de todas; a igreja estava literalmente tomada, as grandes portas inteiramente abertas deixavam a massa de ouvintes se estender pela enorme praça que circundava a igreja e os alto-falantes dispostos em direção à rua transmitiam todo o transcorrer da sagrada missa dominical. Chega o esperado momento em que o padre dirige um leve aceno em direção ao coral para o canto da Ave Maria. As cinco vozes, quase sufocadas pelas lágrimas que escorriam iniciaram titubeantes um canto, antes brilhante e assim foi durante as duas primeiras frases da oração sonora. Um silêncio profundo dominava o ambiente em que soava apenas o murmúrio da Ave Maria, quando, as luzes da igreja se apagaram deixando todo um ambiente na penumbra. Repentinamente ouve-se vindo do alto o vibrar de um violino, exatamente como Luna Serena fazia todos os domingos, com o vibrato em crescendo que iluminou as vozes do coro, agora forte, sonoro, como nunca se havia ouvido na missa dominical. E, todos, sem exceção, puderam ouvir o violino de Luna Serena acompanhar a Ave Maria da missa dominical, desde então, com a mesma assiduidade de sempre.
Essa é a história da carola Luna Serena do modo que me foi contado pelos anciãos de Jaguavera.