Rotina. Todas as manhãs nós levantávamos e pegávamos o caminho para a casa da vovó: meu pai na frente e eu trotando atrás. Não sei se você sabe, mas quando me refiro a uma estrada na roça é realmente uma trilha onde todos têm de andar em fila.
Descíamos o caminho e quando chegávamos ao curral das vacas, papai entregava a vasilha para o Luiz Lucas encher com o leite. Eu continuava mais poucos metros adiante para a casa da vovó que ficava logo abaixo e ele retornava.
Em casa o leite era fervido e servido, inclusive para o bezerrão, meu pai, que bebia um ou mais litros por dia. Ele e os demais gostavam muito, menos eu. Não era muito ligado e quando o fazia, teria de ser misturado com angu frio. Coisa de jerico! Mas eu continuo gostando muito de angu. Mais coisa de jerico para muita gente!
Numa dessas idas e vindas, seca brava, roça secando, boi emagrecendo, as águas do Córrego dos Índios quente, quente devido à escassez e também porque escorria por um longo trecho sobre pedras. Eu procurando a beirada do caminho para poder pisar na grama seca, pois a sola do pé não suportava a quentura da areia. Sapato? Ah! Sapato! Só para dias especiais e nas visitas aos vizinhos, coisa muito cultivada naquela região e naquela época.
De um lado do caminho há uma vargem onde se plantavam milho, feijão, mandioca e até algodão meu avô plantou ali. Muito bonita a lavoura de algodão: “neve” num calor tremendo. Até parecia! Já colhi muitas cachopas. Era gostoso pegar naquela esponja branquinha e macia e colocar em um embornal pendurado no pescoço e caminhar para frente, sempre pra lá…. Sabe (como saber?) que meu avô inventou uma prensa para fazer os fardos do algodão? Como ele era inventivo! Danadinho!
Meu pai me disse que a lavoura do milho não ia ser produtiva naquele ano porque estava faltando chuvas. Pediu-me para esperar um pouco, chegou rente a cerca de arame farpado e puxou um pé de milho pitimbado, já bastante castigado pelo sol. Quebrou uma boneca, tirou as primeiras palhas de qualquer maneira, mas tivera um cuidado todo especial com as últimas, aquelas que ficavam bem junto aos grãos em formação.
Sentamos num barranquinho à beira da estrada, sob a carrapeteira. Ele pegou um pendão de rabo-de-cavalo, cortou um pedaço com os próprios dentes e me foi mostrando com cuidado.
Separou um fio daqueles usando o pendão como um instrumento cirúrgico dissecando uma peça numa aula de anatomia e me dizia para observar: cada grão de milho tinha um cabelinho terminando nele. E eu acompanhando o trajeto do cabelo afastado dos outros pela haste do pendão de rabo-de-cavalo, desde o grão até a ponta. E eu observando. Era verdade. Como é que ele sabia disso? Continuou:
- Cada cabelo desses é um caninho que pega a água da chuva e enche o caroço. Se não tiver chuva ou sereno suficiente, o caroço não cresce. Por isso, quando tem seca a lavoura não produz!
Lindo! Então a água da chuva é que enchia o caroço! Como é que ele sabia disto tudo! Eu já sabia que ele até falava francês, umas duas ou três palavras, mas falava; era bom em geografia, tinha certo conhecimento do rio Nilo, do Egito, dos Andes e conhecia de cor as capitais de alguns países estrangeiros. Também era um craque nas contas e todas “de cabeça”, sem usar lápis para escrever os números. Contas de juros eram com ele mesmo. Não errava uma.
Calcular o peso de um boi, porco, qualquer bicho vivo... Era só olhar, calcular e quando errava, era por um ou dois quilos num garrote de quinze arrobas ou mais. Agora, que ele soubesse também sobre as plantas, era novidade para mim. Onde ele aprendia isso tudo? Ele não percebeu, mas eu estava embasbacado, sentindo um tremendo orgulho dele.
Eu acho que aquelas andanças por aquele caminho mudaram a minha vida. Provavelmente este fato teve influências na minha escolha quando, em outra ocasião, quase no mesmo lugar e de volta para casa ele me perguntou se eu queria ir estudar em Cordeiro, num ginásio que funcionaria no ano seguinte. Nem precisei pensar. Disse que sim na hora. Se dissesse não, também ninguém me obrigaria e, muito provável, eu e todos os meus irmãos ainda moraríamos lá. Nada de ruim nisso, mas seria uma outra história. Que outras histórias eu contaria? Poderia contar alguma?
Graças a ele, eu pude estudar, crescer culturalmente, fazer mais e melhor para muitas outras pessoas com os conhecimentos adquiridos. Aprendi, entre muitas outras coisas, que aquela aula de botânica estava errada, não era nada daquilo, mas querem saber de uma coisa? Eu nunca tive coragem de dizer isto para ele. Também, quem sabe se ele nem lembraria mais? Mas se eu pudesse falar ainda com ele, meu pai, ia dizer que aquela foi a maior, melhor e a mais brilhante aula que eu já tive na minha vida. Foi? Se não, foi certamente a mais importante.
Mas, cacete! Como meu pai que nunca tivera a sorte de frequentar uma escola sabia daquilo tudo? Por que ele sentou à beira do barranco comigo para me ensinar? Como vou saber agora. Ele foi também uma daquelas pessoas das quais eu me orgulho de ter convivido. Ser somente pai, na minha visão das coisas, é muito pouco. Qualquer macho pode ser. Eu vejo meu pai fazendo parte e eu me orgulhando da mesma forma, de um grupo de pessoas mais velhas ou mais jovens do que eu com as quais convivi e ainda convivo. Não sou um cara de sorte? Ensinar para quem deseja aprender é uma dádiva. Aprender…. Ensinar... Eleva uma vida à terceira potência? Acham pouco? Tai! Concordo!