MÚLTIPLAS PERSONALIDADES
Contos  |  Sábado, 8 Maio, 2021 13:44  |  Visitantes e Leitores: 1580  |  A+ | a-
Outro dia, enquanto ia para a cidade pelo metrô, estava lendo um romance interessante, em que o autor, muito oportunamente, diga-se de passagem, introduziu uma personagem bastante curiosa. Era um poeta português que dizia ter quatro personalidades. É muito estranho tanta personalidade em uma mesma pessoa. Despertou em mim, que estou apenas contando a história, uma vontade irresistível de imaginar como seria essa pessoa do tipo quatro em um, tal como a antiga embalagem de marmelada, goiabada, figada e pessegada. É difícil imaginar quatro portugueses numa pessoa só. Você também não acha? E se forem pessoas atrapalhadas vivendo numa pequena cidade do interior, como deveriam ser cada uma delas?
Senti um leve toque na perna, interrompi a leitura, fechei o livro e percebi que alguém tentou abrir a minha bolsa. Provavelmente o cavalheiro que sentou ao meu lado logo que embarquei no penúltimo carro do metrô. Cavalheiro uma ova; quem furta os pertences de alguém sentado ao lado não é cavalheiro. É, sim, um bom deserdado da sorte, um filho da mãe, para não dizer coisa pior. Não me importa se levou alguma coisa. Na divisória principal da bolsa havia apenas um lenço sujo, duas notas de cinco reais e um livro de bolso, já velho e sem capa, que continha as preces que eu conhecia de cor e rezava diariamente. Os principais valores, dinheiro e cartão de crédito, eu carrego dentro do “soutien”, exatamente como minha mãe fazia. É bem seguro e de difícil acesso aos batedores de carteira e larápios comuns. Mas, voltando ao caso do poeta português multiplicado por quatro. É uma verdadeira poesia. Imagine um dos quatro portugueses bebendo vinho e um segundo, terceiro ou o quarto, dizendo besteiras sob o efeito do álcool. O outro chegando em casa e decidindo dormir com a Maria, casada com o primeiro dos quatro. Ou pior, deixando a esposa dormir
com a personalidade mais difícil dentre as quatro, tendo outras três opções disponíveis! Caso sério.
Fiquei superligada no quarteto português; não consigo imaginar outra coisa. Como seriam os quatro? Teriam diferenças entre si? Claro que sim, de outro modo, quer dizer, sem diferenças, dois deles, ou três deles, ou mesmo os quatro deles, seriam apenas um; seriam o mesmo, sem diferenças uns dos outros. Então as quatro personalidades poderiam ser apenas três, ou duas, ou até mesmo somente uma. Certo, apenas uma? Bem pensado. Nesse caso o português dessa história seria um português normal. Normal da cabeça? Sei lá. Não tenho a menor ideia. Mas o certo é que para serem quatro personalidades, o português que admito ser mentalmente sadio – apesar de ser um poeta – diz categoricamente ter quatro personalidades. Então é preciso que existam diferenças no comportamento dessas personalidades para que apresentem diferenças entre si. Vamos imaginar como seria a convivência dessas quatro personalidades. Bem, como eu não conheço o gajo, na verdade nem sei se tal poeta existe ou se era apenas uma personagem. Seria uma ideia sensacional, fazer conviver as quatro personalidades em um mesmo português. Vamos começar dando nomes aos bois. Como se chamariam os quatro portugueses? Manoel1, Manoel2, Manoel3 e Último-Manoel? Ou melhor, gozações à parte, bem poderiam chamar-se Manoel, Joaquim, Antônio e Almeida. Vamos imaginar que esses são os nomes das quatro personalidades do poeta português. E podemos também imaginar que o poeta tinha a própria personalidade quando nenhuma das quatro atuava por ele; nesse caso seriam cinco personalidades diferentes. Caramba. Não tinha pensado nisso. É melhor imaginar que ao dizer que tinha quatro personalidades o poeta incluiu a sua própria. É apenas uma conjetura. Mas tem fundamento. Mas nesse caso, o português do romance deveria ter dito que além da sua própria personalidade ele tinha outras três. Se ele disse quatro, enquanto falava a partir da avaliação feita pela sua própria personalidade, é bem provável que o português fosse um quinteto de portugueses. Se fossem músicos de câmara poderiam tocar música erudita de compositores lusitanos ou então, para músicos comuns, poderiam ser como o nosso famoso Quinteto Violado. Para lembrar detalhes do conjunto brasileiro, fui à Wikipédia, onde encontrei o texto do parágrafo seguinte.
“O Quinteto Violado é um conjunto instrumental-vocal brasileiro formado em 1970, na cidade de Recife, que se caracteriza pela interpretação de músicas nordestinas e a realização de pesquisas sobre o folclore brasileiro. O seu estilo musical é o ‘free’ Nordestino. Inicialmente formado por Toinho (Antônio Alves, Garanhuns), canto e baixo acústico; Marcelo (Marcelo de Vasconcelos Cavalcante Melo, Campina Grande), canto, viola e violão; Fernando Filizola (Limoeiro); Luciano (Luciano Lira Pimentel, Limoeiro), percussão, e Sando (Alexandre Johnson dos Anjos, Garanhuns), flautista. Na década de 1990 passou a ser integrado por Toinho, baixo acústico, compositor, cantor e diretor musical do conjunto; Marcelo, violonista, violeiro, cantor e compositor; Ciano (Luciano Alves, Garanhuns); Roberto Menescal (Roberto Menescal Alves Medeiros, Garanhuns), cantor e percussionista; e o tecladista e arranjador Dudu (Eduardo de Carvalho Alves, Recife)”.
Já imaginou termos um “quinteto Fernando Pessoa” ou um “quinteto Cristiano Ronaldo”, composto por Manoel, Joaquim, Antônio, Almeida e o poeta multifacetado? E se um dos quatro; nesse caso seria melhor incluir o poeta, portanto, e se um dos cinco tivesse inclinações afetivas pouco ortodoxas? Quer dizer, se um dos cinco fosse baitola? Como ficariam os outros quatro, querendo evitar as carícias de um marinheiro, um boxeador ou um astronauta? Acho que seria um método terapêutico. A personalidade saída do armário seria dominante e, muito provavelmente, seria abandonada pelas quatro restantes.
Sei lá. Melhor achar que as cinco personalidades sejam normais. Como isso seria possível? Não, não, espere um pouco. Eu não quis dizer que a personalidade que decidiu sair do armário não é normal, longe disso. Eu disse que se todas as personalidades se comportassem de um mesmo modo. Ah, acho que eu já fiz essa observação lá em cima. Acho que não haveria como identificar as diversas personalidades. Esse poeta seria uma pessoa como todas as que eu conheço. Para sorte dos psiquiatras, psicólogos, terapeutas holísticos, chefes de terreiro, padres e pastores evangélicos, o mais comum é a dupla personalidade. Mas mesmo nesses casos, as duas personalidades podem apresentar diversas nuances comportamentais. Caramba, que confusão. É melhor achar que as personalidades que o poeta diz possuir, sejam criações de uma imaginação fértil, aliás, muito própria de quem faz poesia.
O tempo passa cada vez mais rapidamente. Chegamos na estação Uruguaiana. Vou descer aqui. Vou descer devagarinho e em silêncio. Vou deixar esse poeta português seguir viagem sentadinho no lugar que vai vagar. Tchau, meu caro pentateuco humano – ou imaginário – se a palavra se aplicar nesses casos, penta lusitano ou sei lá como classificar um poeta e suas quatro personalidades. Na verdade ele é um pentelho. Você bem que podia ser cúmplice de quem tentou abrir a minha bolsa. Você me distraiu o suficiente para ser furtada. Até qualquer dia. Foi bom conhecer você.
 
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