GALO MALUCO
Contos  |  Sábado, 26 Fevereiro, 2022 16:02  |  Visitantes e Leitores: 1480  |  A+ | a-
Dr. Dirceu Badini

Deve estar aí na Terra um tantão de anos. A primeira referência que tenho dele data de pouco menos de dois mil anos naquela célebre derrapada do Pedro (ainda não era santo, acho) que negou o Mestre antes do galo cantar. Papelão!
A segunda coisa de que me recordo dele era do alívio que sentia, quando criança, ao acordar noite a dentro e ouvir o seu cantar. Todos – os marmanjos – diziam por lá que “as coisas ruins” das almas penadas, dos capetas, lobisomem e o resto de todas as outras pestes que me sufocavam de medo somente podiam vadiar e atazanar a gente até o galo cantar. Agora, já pensou você suando de medo e ouvir um, dois, montão deles cantar? Ô! Galos benditos! 
Dias atrás eu estava conversando com uma senhora que morou muito tempo na roça. Papo pra lá de bom. Criação, lavoura, seca, chuva, chás pra tudo que é mal, medos, comidas e em determinado momento galo foi citado. Ela se referia à gostosura que é um galo cozido na panela de ferro com batatas e outras coisas mais (Galo no feijão! “Galopé”! Pode?). Meu pai também apreciava um galo bem cozidinho misturado ao macarrão. Ou de qualquer modo que viesse. Sua preferência não era assim tão renitente.
Naquela época tinha de ser feito num panelão que ficava no fogão a lenha desde manhã, para na hora prevista do almoço estar com a carne macia. Panela de pressão não existia e segundo D. Zita não fica com o mesmo gosto. Nunca topei. Não achava graça naquela iguaria.
Então ela me disse que um dos seus filhos é vidrado num galo ensopado e nem pediu, não perguntou se ela poderia prepará-lo: encaminhou direto o figurante principal do futuro almoço. Mãe negar ao filho uma coisa que ela podia e sabia fazer muito bem não tem nenhum cabimento: topou.
No dia combinado pegou o bicho e tascou a faca no pescoço do condenado. Achou que a sua ajudante penalizada deu-lhe uma faca de mesa. Aquilo não cortava de jeito maneira. Bobeou num átimo para arranjar outra afiada e o galo deu nas canelas. Deu no pé e despejou cantoria. Cantava sem parar. Ela ficou condoída e resolveu poupar o magnífico. Uma garganta como aquela não poderia ser ignorada. Faca ali, jamais (jamé, em francês, senão perde a graça, se é que tem alguma). Daria um jeito de arrumar um outro menos feliz e o resultado seria o mesmo depois de ensopado.
Eu então lhe perguntei se tinha certeza do galo cantar. Ficou meio perturbada, pois até àqueles oitenta e tantos anos ela somente ouvira dizer que galo somente canta. Sou maquiavélico, carne de pescoço:
 – A senhora pode jurar que ele não estava xingando todos vocês, mandando todos para cada lugar censurável e coisa e tal? A senhora já reparou que as aves têm cantos diferentes para cada situação? Já viu uma galinha cheia de pintinhos ciscando em algum lugar, tenho certeza! Quando acha alguma coisa boa para a pintainhada comer, faz um cocoricó e eles correm e partilham o pitéu. Mas se aproxima um gavião ameaçador, ela pia um cocoricó diferente, os bichinhos se mandam e escondem onde achar mais seguro, inclusive debaixo da própria mãe que sai de unha e bico com o carniceiro. Acho que eles sabem falar uns com os outros, não é?
Ela concordou comigo por convicção ou simplesmente por não saber o que dizer. Continuei:
 – Se eu fosse a senhora topava a baixaria com ele, armava o maior barraco e via no que dava. Se ele cantasse, a senhora com cara de zangada, dedo em riste, dava-lhe uma espinafração em regra. Acho, com sinceridade, não adiantar muita coisa, mas se ele entender a nossa língua, vai diminuir o canto, já que a senhora me contou que o sujeitinho inconveniente canta dia e noite. Deve encher a paciência dos vizinhos. Não poupe xingamento, viu! Quebra pau!
Quando eu falei em vizinho lembrei-me de que eu a estava incitando fazer um papel ridículo em público e não iam faltar línguas maledicentes dizendo que ela foi acometida de uma piração aguda. Antes da correção, me disse estar disposta a matar e cozinhá-lo, pois ela não está aí para um porcariinha daquele tirar sarro com a sua cara.
Fiquei numa sinuca. Ela pode ter acreditado que o galo não estava cantando e sim xingando muito toda a sua respeitosa família. Fiquei com remorso, pois tudo aquilo que falei antes era balela, - ta na cara – jogando conversa fora. Eu também sempre soube que galo canta, nada mais. Eu tinha de arranjar um jeito de salvar a pele daquele cantante. Foi aí que acendeu uma luzinha neste cérebro enferrujado e filho da mãe e eu lasquei:
 – D. Zita! A senhora poderia considerá-lo doente, até maluco. Já ouviu falar daquele mal que deu nas vacas no estrangeiro? Doença da vaca louca E pega se a gente comer a carne delas. Não adianta cozinhar, assar ou mesmo torrar: a danada não tem nada a ver com os micróbios e passa pro corpo da gente e babau! Num tem cura! Eu nunca ouvi falar na doença do “galo louco”, mas esse bestão que a senhora tem lá no seu quintal pode muito bem ser o primeiro. Onde já se viu um galo que teve o pescoço raspado (ela interferiu dizendo que tem o pescoço pelado), com pé na cova, ou melhor, na panela, consegue safar-se e vive cantando que nem Nero? (Também não sabia quem foi Nero. Aproveitei e esnobei minha cultura inútil pra cima da velha, ressaltando ter sido ele um doido varrido). Só pode estar pirado. Doidão de tudo! 
Agora estou num banzo de dar pena: será que D. Zita está saindo no cacete com o galo? Ou ele acabou na panela? Pior: ela pode estar mais do que convicta de que sou eu o maluco desta história idiota! Ah! Meu Deus! Que papo mais infeliz!
Aposto alto que isto tudo tem a ver com o irresponsável do meu inconsciente. Ele não perderia uma oportunidade dessas por nada. Alguém se habilita a uma fezinha? Pago três por um e ainda leva o empate de lambuja!
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