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Terça-feira, 25 Janeiro, 2022
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Dr. Dirceu Badini
Ele foi o primeiro empregado do meu pai. Antes vivia nas terras da minha avó Luciana e quando meu pai casou-se, preferiu ir com ele. Era forte, muito negro, não muito alto e tinha traços peculiares. Chapéu de palha sempre bem enfiado na cabeça, pés descalços, dedos muito abertos, esparramados, um andar claudicante, medroso pelos grandes cravos plantares e mãos grosseiramente calejadas. Nunca o vi sem camisa e sempre com as calças arregaçadas até as canelas. Falava pouco e quando o fazia era com a voz surda, baixa e uma entonação muito própria, preferindo fazer gestos com a cabeça para concordar ou não. Seu riso era curto e indefinível, mas era um doce de pessoa. Trabalhador, cumpridor dos seus deveres e também com os dos outros. Numa carreira de café, na capina, colheita do milho ou pra leirar, ele sobrava. Como sobrava também nos eitos dos canaviais ou em qualquer coisa que se dispunha fazer. Não tinha parelha.
Um dia sinalizou para mim. Eu era ainda muito menino e não tinha medo dele. Já tinha um monte de bambus cortados. Ajoelhou ali, pegou duas taquaras mais grossas amarrou um cipó nas pontas de cada uma, torceu e fez um “X”, colocou-o no chão e começou a trançar as paletas do bambu antes preparadas.
Eu, de cócoras, pertinho, olhar fixo e curioso, observava. Nós não trocamos uma única palavra. Não sabia o que ele fazia e aquela era uma situação inusitada de um aluno atento e muito aplicado àquela aula de um professor mudo.
Ia colocando alternadamente o bambu, trançando dali, trançando daqui e depois de colocar a última talisca vi que ele havia construído uma arapuca. Deu mais umas arrumadas, pegou com seu dedo um dos lados, levantou e deixou-a arriar de uma vez e pelo movimento dos lábios, notei que estava satisfeito. Pegou uma forquilha de um pau qualquer, uma embira de bananeira, debulhou um pouco de milho e, ainda sem falar absolutamente nada, subiu o morro e lá nas grimpas, junto ao bambuzal, armou a geringonça. No dia seguinte cedo já estava à porta da cozinha com um inhambu chororó peado e coraçãozinho disparado na expectativa da morte iminente. Sempre os soltava.
Madrugada que fosse, aos primeiros sinais de tempestade, Trazito, assim como outros, corriam logo ao terreiro para abrigar o feijão, arroz ou milho posto ali para secar. Se a chuva caísse sobre eles, brotavam e toda colheita se perdia.
Mas isto era de segunda até sábado à tarde. Então, pegava o seu dinheiro, ia para a venda, reservava um pouco para a comida e mandava ver na cachaça. Aí se transformava, ficava falante, ria de tudo e de todos e tinha uma predileção: falar do meu pai, seu patrão. Aproveitava! Descia o cacete!
Numa dessas falações, monte de gente ouvindo e meu pai logo atrás dele. Quando percebeu, virou-se e disse:
- Ué! Ocê está aí, Derso? E voltando para a sua rodinha:
- Quáis que o homi escuita nóis falano mal dele, né?
Meu pai não se importava, gostava dele e foi um dos primeiros a ter aposentadoria rural. Logo que foi possível, meu pai inscreveu-o e tempos depois ele recebeu uma bolada, para a dimensão e limites do seu mundo econômico.
Uma das últimas coisas de que me lembro do Trazito foi quando ele voltou da venda, parou na nossa casa e, já bem ferrado, mostrou alegre e rindo à toa as compras feitas: um grande saco de coisas nas costas e na outra mão o principal troféu: dois litros da cachaça Lajeana, pura, purinha, velha, curtida e amarelada nos grandes tonéis de cerejeira. Não era mais aquela porcaria de cachaça capenga, água fraca vagabunda que o puto dinheirinho mal dava para encher uma merreca de vidrinho de Capivarol que ele sempre carregava enfiado no bolso traseiro da calça. Consumia toda num só domingo. Ia beber até o cu fazer bico, dane-se o resto. Estava aposentado e endinheirado. Pronto!
Não iria mais se importar com o ronco dos trovões nas madrugadas sonolentas e nem tão pouco com a chuva impertinente teimando em molhar o feijão que secava no terreiro. Ah! Nem mais se preocuparia em ajudar a menina Fieca perseguir o seu sonho de criança tímida e carente a catar o que sobrou da lavoura de feijão, vaginha aqui ou uma rama inteiriça, bem caprichada e esquecida no sopé do morro ou perdida pela beira das trilhas.
Não iria mais fazer a xepa nas lavouras abandonadas! Ela era ainda muito pequena, tinha um monte de vida pela frente e certamente conseguiria concretizar seu sonho e alcançar sua meta de comprar e comer uma lata de marmelada inteirinha, sem precisar dar uma lasquinha, um “fataquinho” que fosse para alguém.
Não iria mais se importar com as coivaras nos meses de agosto, apagar queimadas renitentes em saltar os aceiros; não enfrentaria mais os eitos dos canaviais ou as leiras dos cafezais ou teria de cortar varas de amoreira para bater o feijão ou arroz nos batedouros. Acordaria quando quisesse, iria à venda quando quisesse sem se importar com o amanhã. Ele agora é o rei.
Mas Trazito morreu. Como todo mundo. Acho mesmo que Ele, no acerto de contas no final de tudo, prorrogou um pouco mais o prazo, mesmo que Trazito não tivesse mais haveres. Morreu no ápice da sua glória, na plenitude da sua preguiça, na explosão do seu gozo máximo. Seu último dia foi a apoteose da grande mentira, da maravilhosa farsa que toda sua vidinha acumulou e deixou para o último ato, tão grandioso quanto simples. Trazito morreu no maior e no mais sublime dos porres! Como nem todo mundo!
E quando chegou lá, Ele acenou-lhe de longe, familiar até, mostrou-lhe um sorriso meigo, diferenciado e o fez entrar.