UM CÉU CHEIO DE ESTRELAS
Contos  |  Terça-feira, 7 Dezembro, 2021 12:39  |  Visitantes e Leitores: 1450  |  A+ | a-
Dr. Dirceu Badini

Acho que se chamava Luísa, não tenho certeza. Era uma criança de uns sete, oito anos de idade, aspecto físico normal para sua idade, mas muito tímida e introvertida. 
Morava na roça numa casa até boa, conforto relativo, filha de pais saudáveis, mas suas atitudes deixavam os parentes preocupados. Apesar de ninguém comentar nada, pois quem tivesse um filho doente tratava de esconder o fato, não se devia falar daquele assunto até porque alguns acreditavam ser castigo por algo muito ruim praticado pelos pais. Deus brabo era o daquelas épocas remotas!
A menina quase não saía de casa, falava pouco, sempre com o dedo indicador dobrado e enfiado dentro da boca, quieta. Às vezes fechava um dos olhos ou apertava as duas pálpebras fazendo careta. Pior foi o dia em que a encontraram comendo terra do barranco. Se ela encontrava um caco de telha ou de tijolo bem maneiro, comia-os com tamanha vontade… ah! Meu Deus! Mais preocupações.
Primeiro os avós, depois os parentes mais distantes e no fim todos meteram a colher: 
 – A gente não queria se meter, mas todo o mundo ta falando, será que vocês ainda não perceberam etc., etc… dizia a tia Matilde. A menina tinha realmente alguma coisa errada. Lembraram até de uma tia que tinha miolo mole, um outro não regulava bem das “carrapetas” e por aí afora.
Primeira providência seria levá-la a uma rezadora. Sá Evira seria a escolhida por sua larga experiência e capacidades comprovadas. Além do mais, Sá Evira tinha diferentes rezas para cada mal. Se fosse estroncamento de junta, ela fazia a costura; espinhela caída a benzedura era feita com raminhos de macaé ou vassourinha e para males da cabeça usava galhinhos de alecrim cheiroso.
Como a suspeita era de miolo mole, iniciou a reza com os raminhos de alecrim. De olhos fechados, rezando em voz audível palavras que ninguém entendia e sempre fazendo com o molhinho da erva os movimentos em forma de cruz.
Depois de algum tempo parou, abriu os olhos e olhou para as folhas que estavam na sua mão. Elas estavam normais e até bem viçosas. Disse, então, que o mal não seria dos espíritos, pois as folhas estariam murchas se isso fosse verdade. Deveriam levar a menina a um médico.
Morando na roça, médico longe, consultaram-na primeiro com o farmacêutico logo ali perto. Ele trabalhava há muito tempo no ramo e todos confiavam muito nas suas receitas. 
Seu João olhou para a garota e percebeu que doença, doença mesmo ela não tinha, mas, muito experiente, soube decifrar com maestria a mania de comer terra. Era anemia. Privação de ferro que o barro vermelho tem de sobra. Mas notou que um dos seus olhos era meio desconjuntado e de vez em quando fugia e ela ficava vesga, mas uma vesguice diferente das que ele já vira. Achou mesmo que deveria ser consultado um médico, mas não deixou de receitar, ou melhor, preparar um lombrigueiro de erva de Santa Maria. Até que o remédio em si não era dos piores, umas drágeas gelatinosas, de cor amarelo-ouro, grudentas e se pareciam com essas balas jujubas de hoje em dia. Engolir aquilo até que não era muito ruim não, mas o arroto e o purgante depois…
Lombrigueiro era administrado a todos ao mesmo dia. Nenhum dos “condenados” ficava sabendo de alguma coisa, pois senão seria mais uma noite insone. A dose seria forte demais se ajuntasse com a da mula sem cabeça, saci-pererê e outros medos. A criança tinha de tomar em jejum. Então, para dar tempo de fazer o efeito, acordava a infeliz pela madrugada. Depois de duas horas de ter engolido a erva Santa Maria (quenopódio, manja?) vinha a sessão de tortura. Tinha que tomar uma garrafinha de óleo de rícino!
Começava aí o suplício! O pessoal do DOI-CODI se sentiria desse tamanhinho se tivesse oportunidade de assistir algumas daquelas sessões de tortura. A criança apertava fortemente uma chave na mão. Despejava-se todo o conteúdo daquele maldito óleo numa xícara ou caneca. Mas quem ia tomar não podia ficar olhando nem cheirando. Coisa terrível!
Um marmanjo segurava a testa e ao mesmo tempo tapava os olhos do condenado. Com a outra mão, pedia-se – pedia nada! – Obrigava a criança apertar o nariz. O cheiro daquilo era de arrebentar.
 – Bebe tudo! Não cospe! Tudo, tudo! Abre a boca! Aperta a chave! Engole! Não joga fora! Segura bem a chave! 
E se bobeasse, levava um coque no cocuruto. Falava-se muito na chave. Acho que era para desviar a atenção do mártir do danado óleo de rícino. Depois disso tudo, ainda você tinha de tomar uma xícara de água doce morna para tirar o gosto do purgante.
Que as lombrigas morriam, morriam, sem dúvida. Às vezes morria também a pessoa que as tinha. Obrigatório fazer o exame de urina. Se tivesse perda de albumina, as lombrigas estavam salvas por um bom tempo.
Do clínico, para encurtar o assunto, ela foi para o oculista, pois o doutor havia notado a mesma coisa e, já com maiores conhecimentos do que o seu João pensou tratar-se mesmo de uma doença neurológica afetando a visão. 
Para o oculista a solução foi até fácil. A criança tinha uma miopia de grau bem elevado e necessitava usar óculos, coisa absurda para a época em que somente pessoas velhas sofriam das vistas. Mas, melhor assim, pois se fosse uma doença nos miolos seria muito pior. Mal por mal, melhores os óculos.
 Enviaram a receita para a ótica e o tempo se passou. Os pais até estavam gostando da demora, pois colocar óculos numa criança era coisa que não estava agradando muito e por cima não faltavam comadres para achar um absurdo, que o médico estava errado, coisas do gênero. Na verdade, ninguém estava acreditando muito nesta história de enxergar mal. O nhe-nhe-nhem era de que a menina não era normal. Pessoas existem para quem quanto pior, melhor! (Desde que seja nos outros).
Quando chegou o dia, Luísa colocou os óculos e não houve muita reação no momento. A primeira coisa percebida, foi que a vista esquerda, quase sempre de “perna aberta”, voltou pro lugar. E ela olhava para um lado, para o outro, levantava os óculos, tornava colocar sobre o nariz e não mais colocava o dedo na boca, mas também não dizia nada. Estava diferente, mais excitada, ia para a sala, voltava para outro quarto, retornava para cozinha. E todo o mundo quieto, esperando, fingindo não prestar atenção e ela nada de dizer alguma coisa. E assim se passou aquele resto de dia.
Na manhã seguinte seu primeiro ato foi colocar as lentes. Foi para o terreiro, andou pelo pomar, olhava tudo, às vezes até com mais atenção coisas antes não muito ligada. Chegou até a pegar um caderno e rabiscar. E esta foi a ocorrência que mais impressionou o pessoal da casa, todos fingindo sempre não dar a mínima, mas estavam muito excitados, ansiosos.
Quando deixou a folha de papel e estava lá pra fora, pegaram o desenho, ou melhor, os rabiscos ali deixados. Aí foi o maior banzé!
Uns achavam que era um galo, porque tinha bico e crista. Mas logo alguém observou um dado muito significativo contra: galo não tem quatro pernas! É! Não tem! Então seria uma vaca. 
 – Bota sentido! Isso que parece crista são os chifres! Disse uma tia.
 – Tudo bem, disse um outro, mas vaca tem quatro tetas e esta só tem duas.
Ufa! Até que enfim se chegou a um consenso: aquilo deveria ser um touro. As tetas não seriam tetas e sim os dois bagos do bicho. Também, “tadinha”, ela nunca havia desenhado antes! Estava pra lá de bom! Só faltaram bater palmas e ovacionar a obra de arte moderna da pequena Luísa.
Mas seriam os óculos responsáveis por esta mudança toda? Até desenhando já estava? Ou a matança das lombrigas? Ela até não comia mais terra! Cruz! Credo!
Não, não deveriam ser somente os óculos. Já estavam esquecendo das rezas de Sá Evira ou do Biotônico, Capivarol e a dica de comer bastante chouriço, orientação do seu João Costa. Naturalmente não havia ainda tempo suficiente para tudo aquilo junto fizesse efeito e os resultados estavam aparecendo agora. O apego aos óculos seria tão somente coisa de criança. Espírito de imitação! Novidade! Cedo, cedo enjoaria daquilo e o abandonaria. 
Tempos depois, numa noite de inverno, aventurou-se sair pela porta da sala e ir ao terreiro. Tão depressa saiu como voltou e muito assustada. Apavorada! Correu para sua mãe, agarrou-se a uma das suas pernas, respiração forte, coraçãozinho disparado, trêmula… Alguma coisa muito importante acontecera. Algum bicho noturno, cobra, onça (onça, não! Não havia por lá.) ou assombração, alma penada assustando a menina, agora já tão diferente. Praga, sô!
Apanharam foice, lanterna, crucifixo e partiram todos pela porta da sala em direção ao terreiro. Nada lá! Luísa dentro da casa, agarrada com força à perna da sua mãe, tremendo, medrosa. Depois de muita insistência ela saiu pela porta quase arrastada e apertando com a mãozinha suada a mão da sua mãe, apontou com a outra para cima, em direção ao céu, sem dizer palavras e sem coragem de levantar o olhar. 
Lá estava simplesmente um céu de inverno. Lindo, lindo, sem nenhuma nuvem e cheio, cheiinho de estrelas. Ah! As estrelas! Assustaram a menina! Luísa nunca as tinha visto.
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