BRAGUINHA E O MENGO!
Contos  |  Sábado, 8 Maio, 2021 13:29  |  Visitantes e Leitores: 1653  |  A+ | a-
Ele era incorrigível. Audacioso, abusado de verdade quando se tratava de torcer pelo Flamengo, seu clube do coração. E de fígado, porque a cada jogo – celebrando a vitória ou esquecendo a derrota – ele tomava todas. Assim era o Braguinha. Sílvio Anastácio da Silva Braga. Amigo de infância, Contador de profissão e especialista em declarações de imposto de renda. Arranjava deduções até das despesas com namoradas e garotas de programa. Compenetrado ao contar as saudosas histórias de Zizinho, Evaristo, Leandro, Zico, Júnior e tantos outros que para Braguinha honraram o manto vermelho e preto e mereciam estátuas na pracinha do bairro.
Num certo domingo de Fla x Flu Braguinha começou a comemorar ainda cedo, antes do almoço. Alternava um gole da pinga Saramandaia, que chamava de “água benta”, com um copo de cerveja. E assim foi manhã adentro, até pouco depois do meio-dia, quando Celeste, a dedicada esposa, anunciou que o almoço estava servido. Celeste, astuta como poucas mulheres do Engenho de Dentro, aproveitou o estado de alegria de Braguinha para dizer que a filha do casal, Jurema, nome escolhido em honra à cabocla Rainha das Matas, entidade de luz da Umbanda, estava de namorico com um ótimo rapaz, o Genebaldo, um crente da igreja evangélica Presbiteriana Viva. O rapaz frequentava o templo na esquina da rua onde moravam. Braguinha perdeu a fala, seu rosto ficou vermelho, os lábios roxos e pareceu desfalecer na poltrona em que sentava. Subitamente, levantou-se da poltrona, já parcialmente refeito e pede à Celeste:

Onde está meu revolver?
Você, graças a Deus, não tem revolver, meu amor! – Responde Celeste.
Uma faca, facão, espeto de churrasco, qualquer coisa, anda Celeste, anda logo com isso! – E, titubeante e trocando os passos cai no chão. A respiração funda e arfante preocupa Celeste que grita por socorro. Os vizinhos da casa dos fundos acorrem e, prontamente, deitam Braguinha na cama do quarto do casal. Aos
poucos a respiração de Braguinha melhora, bem como a cor dos lábios e do rosto. Agora parece estar embriagado mais do que desfalecido. Silvino, o enfermeiro da casa em frente chega, olha o pulso, a pressão e a respiração de Braguinha e afirma: – É só efeito da bebida. Precisa de repouso e pouco barulho. Deixa o Braguinha dormir sossegado. Ele vai acordar pronto pra outra!
Nesse momento Jurema chega e pergunta à mãe:
Falou? – Celeste, bastante preocupada, responde:
Falei! – Jurema inquieta, insiste:
E aí, como foi?
Depois conversamos com mais calma. – disse Celeste quase sussurrando. E acrescentou:
Se ao menos Genebaldo gostasse de futebol.
Impossível mamãe. Ele gosta de música erudita e já fez um curso de culinária; adora cozinhar, jogar xadrez; é um homem mais “cerebral”. E faz cada suflê, hum, verdadeiro manjar dos deuses!
Lá pelas cinco da tarde, ouvem-se gritos vindos do quarto. Braguinha só de cueca, a barriga gorda saltando por sobre a cintura, sentado na cama, pergunta com a voz rouca e aos berros: – Tamos ganhando de quanto? Porque a TV está desligada? Onde é que eu estou? Onde está todo mundo? Tive um pesadelo horrível com Celeste falando da minha Jujú. Onde está ela?
Celeste entra no quarto, acaricia Braguinha, ajuda-o a deitar-se novamente, acomoda o travesseiro sob sua cabeça e, num instante, Braguinha está roncando, como de hábito quando exagera na cerveja ou na “água benta”.
Lá pelas tantas, Braguinha acorda; a cabeça parecia ter dobrado de tamanho, a dor era forte e a fronte pulsava. Como sempre, culpa a água benta: – Acho que o Zeca me vendeu cachaça falsificada. A verdadeira Saramandaia desce como água e açúcar.
Quando se toma um gole, meu amor. Beber duas garrafas faz qualquer pinga parecer falsa, disse Celeste com um tom entre o severo e o carinhoso. – Aliás, é
bom fazer justiça: mulher de pau d’água, sempre sabe lidar com o despertar de um bom porre!.
E, quem foi que falou comigo sobre um namorico da Jujú? Será que foi no pesadelo, mesmo?,- Pergunta Braguinha já meio desconfiado dos cafunés de Celeste.
Amor, amanhã, falamos sobre isso. Ah, hoje foi dia do Flu. Três a zero. Um penalti arranjado pelo safado do juiz e um gol contra. Pra nós foi só um a zero e pronto. Tem volta!
Não é possível! Abre uma geladinha, tô pau da vida! Logo pro Flu? Não podia ser o Ituano ou o Cruzeiro? Reclama Braguinha, irritado.
Querido, já é noite. Vamos dormir juntinhos e amanhã conversamos. Temos o dia inteiro. Vida de aposentado permite longas e boas conversas.
Na manhã seguinte, lá pelas nove horas, depois de um banho frio e um gostoso café com leite e pão fresquinho com requeijão, Braguinha chama Celeste e, com um semblante sério, parecendo bastante preocupado, pergunta se já podem falar sobre Jurema. Celeste passa a mão sobre o ombro de Braguinha e com voz séria diz:
Escuta tudo o que eu vou dizer sobre a nossa Jurema. Deixa eu contar a história toda. É assim ou não falamos nada. Percebendo que Celeste falava sério, Braguinha apenas acenou com a cabeça e, com a face empalidecida, esperou pelo que considerava o pior.
Jurema gosta muito, ou melhor, está apaixonada por um bom rapaz, o Genebaldo. É correspondida. O rapaz é sério, trabalhador e tem boas intenções. É de uma família do interior de Minas Gerais. Eu aprovo e acho que você devia fazer o mesmo. Nos dias de hoje é raro aparecer um namorado assim como o Genebaldo.
Minha doce Celeste. Eu tenho que investigar a vida desse rapaz. A minha Jurema não vai casar assim com qualquer um que apareça, não. Deixa eu falar com ela e esse tal de Garibaldi. Celeste corrige:
É Genebaldo. É religioso, trabalhador e adora nossa filha.
Assustada com a atitude de Braguinha, Celeste se adianta rumo ao quarto de Jurema. Ao abrir a porta do quarto, encontra a cama arrumada e uma carta sobre o travesseiro endereçada ao pai. Braguinha com as mãos trêmulas abre o envelope e estende a carta dobrada para Celeste. Numa reação automática, Celeste empurra a mão de Braguinha enquanto diz:
Abra e leia, a carta é pra você!
Braguinha abre a carta lentamente, enquanto senta na beira da cama; uma fina camada de suor frio escorre pela testa:
“Querido papai: Desculpe essa atitude. Eu e o Genebaldo temos certeza de que você não iria aprovar a nossa união. Estamos viajando para um lugar onde possamos organizar a nossa vida e sermos felizes. Acredito que estou grávida e, por essas razões, achamos melhor o caminho que escolhemos. Você vai acabar entendendo as nossas razões. Às vezes o que parece certo para uns parece muito errado para outros. Temos nossa vida inteira pela frente e não achamos justo guiar as nossas vidas pelos seus valores. Mamãe entende as nossas dificuldades. Genebaldo tem uma pequena poupança e não vamos passar dificuldades. Já temos nossas escolhas feitas. Um dia qualquer, quando a poeira desse momento baixar em seu coração agitado, faremos contato e, se você aceitar um genro, o Genebaldo será um homem muito feliz! Por favor, não nos procure antes desse dia”.
Braguinha chora copiosamente e diz a Celeste que morreu; manda providenciar o enterro. O mengão perde o Fla x Flu, Jurema foge de casa e Celeste dá cobertura para um sequestrador de filhas carinhosas! Meu mundo acabou, acabou… Celeste acaricia seu rosto com lágrimas nos olhos e diz amorosamente:
Querido. Você é um pai maravilhoso. Só não entende que os filhos não são nossa propriedade. Você cuida, educa e prepara os filhos para serem pais! Não são nossos para sempre! A nossa Jurema aprendeu a ser destemida com você e vai ter uma vida muito feliz.

Mas, Celeste. Eles devem ter ido para Minas. Se tiverem um filho, Cruzeiro ou Atlético serão nossos competidores com o menino. Eu não sei se aguento isso.
O tempo passa, passa e Braguinha sempre tomando todas. Agora, aos domingos, sábados, quintas, feriados e dias santos e, pra variar, todos os dias. Até que Celeste dá um basta. Falando com a dureza que Braguinha jamais conhecera, Celeste dá a decisiva:
Seu Sílvio Anastácio da Silva Braga. Chega. Eu não aguento mais curar porre de marido pau d’água. Agora é todo dia. O doutor já falou que o teu fígado começou a reclamar de tanto álcool. Ou você toma jeito ou vai ficar sozinho. Estou indo procurar a Jurema. Não posso terminar os meus dias, ajudando você a se suicidar com cachaça. Se você quiser se tratar eu ajudo. Se quiser continuar nessa vida, “me inclui fora dela”! Não nasci pra isso, não. “Te esconjuro”! Vou exorcizar você do meu caminho, seu Braga. A vez é sua. Pode escolher; ou um tratamento de alcoolismo ou sua atual empregada, antiga esposa Celeste, está fora!
A firmeza de Celeste assustou Braguinha que se achava o “rei da cocada preta” no pedaço. Braguinha foi logo adiantando:
Flor da minha vida. Eu não sou nada sem você, a minha doce Celeste, a rainha do meu lar, o molho do meu churrasco, a azeitona da minha empadinha, a mais generosa das mulheres, depois de Maria mãe de Jesus. Me dá um tempo; um tempinho só pra digerir tudo isso. Faço tudo que for preciso pra ficar com você do meu lado. Abandono até a água benta da semana e fico com a dos domingos. Fechado?
E Celeste não esmorece:
Fechado. Só que, aos domingos, de cara cheia, você vai dormir onde quiser, mas não aqui em casa. Aqui, de agora em diante, só tem lugar pra gente normal. Cara cheia é no boteco do Zeca ou sei lá onde! Não na casa de dona Celeste. Necas de pitibiriba… E tem mais, não pode esquecer que tem uma filha, genro e neto que nem conhece.
Braguinha arregala os olhos e diz gaguejando:
Você falou neto? É homem? Como é que você sabe? Pergunta ansioso.
Jurema me falou. Escreveu carta, mandou foto com o nome do menino. Seu nome é Fábio. Fábio Braga de Almeida. Deve estar com 5 anos agora. Eles já se foram há quase seis anos.
E como você nunca me falou nada sobre isso? É um crime.
Crime é você tomar um porre que não cura nunca. Você está bêbado há quatro anos. Você começa a beber de madrugada, quando a bebida da noite ainda não passou o efeito e emenda os dias da semana com um copo na mão. As vezes, com um copo em cada mão. Você nem sabe que a Dilma foi tirada do governo. O Michel Temer assumiu no lugar dela; até quando ninguém sabe. O Lula foi condenado pelo juiz Sérgio Moro. A nossa rua acabou de ser calçada. O Padre Eleutério foi transferido de paróquia. Dona Aracy, da casa ao lado, está internada há seis meses, pelo SUS. Teve um derrame. Braguinha, você saiu do mundo da gente pra viver no mundinho infeliz da cachaça. Chega, não aguento mais isso. Quero viver como todo mundo. Quero fazer coisas, rever minha filha, conhecer meu neto, fazer feijoada e bolo pro meu genro. Chega de lavar chão vomitado!
Braguinha largou o copo que, sem perceber, tinha segurado enquanto Celeste falava. Recostou a cabeça no ombro de Celeste e, com voz trêmula e pausada, disse:
Querida Celeste. Eu preciso de você agora mais do que nunca. Eu quero voltar a ser o Sílvio Braga que você amava. Largar a água benta pode demorar um pouco, mas se formos nós dois a tomar conta disso, eu consigo. E vou voltar a ser o pai que a nossa Jurema sempre amou. E quero conhecer o meu netinho, o mais novo macho do pedaço!!! O mengo vai ganhar reforço.
Está bem, está bem. Mas vamos começar hoje. Sem álcool na casa. E vamos marcar uma consulta particular com o Dr. Amadeu. É um bom médico e cobra uma consulta baratinha. Vamos ouvir o que ele diz, está bem assim?
Claro Celestinha, o que for pra fazer é só dizer que “tamos” lá!
O Dr. Amadeu ajudou bastante com o abandono da bebida e, após 6 meses longe da “água benta” e da cerveja, Braguinha parecia outra pessoa. Perdeu bastante barriga, ganhou mais disposição, começou a fazer exercícios e caminhar pelo bairro. Podemos dizer que ganhou vida nova. Celeste não conseguia conter a alegria e continuava sendo a meiga esposa de sempre, fiel companheira de Braguinha. Um dia, o telefone toca e Braguinha em pessoa atende, o que não fazia há anos.
Papai? – A voz de Jurema tira lágrimas dos olhos de Braguinha.
Jujú, minha querida filha. Quanta saudade! Quando vem nos visitar? Vou mandar trazer um cabrito!
Sem exageros, papai. Tenho conversado com mamãe e acho que está na hora de reunir a família. Genebaldo recebeu uma boa proposta de trabalho no Rio. Ficou de estudar o assunto, mas quer conhecer a empresa. Acha que podemos ficar na tua casa por uns dias? Genebaldo, eu e o Fabinho? Se o meu quarto ainda estiver vazio, serve. Nos acomodamos muito bem nele. Podemos?
Querida, a casa está aberta desde sempre. Esperamos vocês com muita ansiedade. Me fala do Fabinho; como ele vai?
Está bem, papai. Fabinho é muito esperto. Adora música e dança.
Que barato, vai ser o maior funqueiro aquí do Irajá!
Pai, Fabinho adora dança clássica. É o primeiro aluno da turma do balé na escola. Tem um movimento lento e gracioso que flui com grande facilidade. Mantém a estética e o equilíbrio em cada passo. Seu adágio e os pliés são deslumbrantes. E preparamos uma surpresa para você. Aguarde.
Chorando de alegria, emoção e, principalmente, medo do que veria, Braguinha desliga o telefone e sai da sala pensando alto:
Seja o que Deus quiser. Eu devo merecer! Quem manda beber tanto assim! Será castigo?
Exatamente na quarta-feira, três dias depois do telefonema a campainha da casa toca e Celeste corre para abrir a porta. Jurema, novamente grávida, aponta para a barriga enquanto entra e vai dizendo:
Agora é a Jujuzinha, papai! Menina. Fiz a ultrassonografia antes de vir. Trouxe as imagens pra você ver. E o filme do Fabinho dançando. Genebaldo quer que você escolha o nome dela.
Após Fabinho, menino magro e alto para a idade, Genebaldo entra, vestido com a camisa do Flamengo, sorrindo abertamente para Braguinha. Ao beijar Celeste,
vira de costas e mostra o número 10 na camisa e o nome “Sogrão”. Foi o bastante para Braguinha levantar vôo:
Cara, meu genro favorito; ninguém nesse mundo encosta em vocês sem passar por cima de mim, vivo ou morto! Genê, só posso oferecer água ou refresco, mas ofereço o nosso lar a você, minha Jujú e meu netinho querido.
Em seguida, Braguinha pega Fabinho no colo e joga pro alto, agarrando pela cintura. Ao ser colocado no chão novamente, Fabinho tira as sapatilhas de balé do bolso e mostra a Braguinha, com um acompanhamento sonoro:
Tan, tan, tan, tã. Vô olha só.
Nos dois pés das sapatilhas, estampado em vermelho e preto, o escudo do Flamengo!
A chegada e a recepção ao casal e ao neto não poderiam ter sido melhores. Braguinha, orgulhosamente, acariciava a barriga de Jurema e, ao mesmo tempo, abraçava Genebaldo e cantarolava O Sole Mio para Fabinho, cheio de alegria.
No dia seguinte, Genebaldo acordou mais cedo e conversou com Braguinha:
Sogro. Vim ver o antigo templo que frequentei. Eu fui convidado para ser o Pastor Assistente aqui e, como sou do bairro, achei que devia pelo menos estudar o caso. Nossa vontade de voltar pro Irajá é grande.
Braguinha não se conteve:
Aceita logo meu genro. Fica aqui em casa com a família o tempo que quiser. De preferência pra sempre. Quero ver nascer a Celestinha. Família unida é família feliz. Estou doido pra jogar um xadrezinho com você, ver o Fabinho dançando e se você não se incomodar, ir todo mundo no domingo ao Maraca. É a final contra o Vasco. Vai ser tudo ou nada. Mengooo!!!!!!!
Ouvia-se ao fundo o riso abafado e prolongado, entre beijos e abraços, de Celeste, Jurema e Fabinho, enquanto Genebaldo e Braguinha acertavam os detalhes da mudança.
 
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