ARIEL
Contos  |  Terça-feira, 26 Outubro, 2021 13:10  |  Visitantes e Leitores: 1451  |  A+ | a-
Dirceu Badini
Ariel era um passarinho, um desses canários criados em gaiolas e por isso tem que ficar ali para sempre, pois já perdeu o instinto de procurar alimentos por sua própria conta. Ele pertencia a minha sobrinha que o encontrou um dia numa feira, dentro de uma gaiolinha em cima de uma banca qualquer. 
Como toda criança faria, foi logo colocando o dedinho por entre as varetas. Sorte dela que não era uma arara ou outro bicho mais nervoso, mas o canarinho sem vergonha não bicou forte não. Desceu do poleiro de cima onde estava, ficou pertinho de dedinho da menina, olhou de um lado, olhou do outro, fazendo movimentos rápidos com o corpinho e soltando uns piados suaves e de leve beliscou o dedo dela, assim como se estivesse acariciando, como se a quisesse agradar.
Ela rapidamente o retirou, meio assustada, meio nervosa, e segurou as duas mãozinhas apertadas contra o peito, olhou para os pais, cachinhos de anjos balançando na cabeça, sorriso franco nos lábios. Recolocou lá o dedinho agora mais para dentro e de novo deu aquelas beliscadinhas sutis, fazendo cócegas, como ela as referiu. Não deu outra:
Compra pra mim, pai!
E quem vai negar um pedido de uma filha ainda mais quando se pode dar aquilo pedido? Além do mais, o meu cunhado também ficou meio gamado pelo bichinho, mas quis certificar-se se cantava. O barraqueiro garantiu que sim. Era um macho, coisa e tal, deitando ensinamentos e outras sabedorias para cima de um freguês que ele percebeu, de cara, não saber nada do que estava comprando. E lá foi ele feira toda carregando aquela gaiola e o bichinho lá dentro dando seus piadinhos furrecas. 
Chegando a casa minha sobrinha batizou-o Ariel e o Aurélio passou para mim as seguintes informações: Ariel, espírito do ar em “A Tempestade”, de Shakespeare (v. shakespeariano). Doce, suave e espiritual. Faltou o Aurélio dizer também que aquele, lá da casa da minha sobrinha, era um fresco, não cantava nada, só piava e comia. Mas, sejamos tolerantes, pode ser que ainda fosse filhote e coisa e tal.
Voltou o meu cunhado tempo depois lá na feira para saber mais sobre o passarinho. Informaram como se fazia para saber o sexo e em casa foi logo pegando o Ariel, pendurando de cabeça para baixo (paulista fala de ponta-cabeça!), sopra dali, sopra daqui, passa os dedos e olha lá nas “partes” dele. Sem dúvidas era macho e não cantava porque não queria.
Dias passaram e ele ficou mais agoniado porque o bicho estava quieto. Voltou à feira. Nesse dia um outro feirante lhe deu uma outra receita que não falharia:
 – O senhor compra semente de mostarda e dá pra ele. Quando ele for cagar, vai arder o cuzinho dele e ele vai cantar à beça! 
Olha! Eu não entendo nada de passarinhos, mas se a minha hemorroida está doendo, ardendo, eu viro uma arara, ficou fulo da vida, mordo as orelhas e dou coice até nas sombras e o danadinho lá canta? Fica alegre? Ou será que canto de passarinho não tem nada de cantorias? Quem sabe se na realidade ele não está xingando todo o mundo? 
Pensando bem, ocorreu-me agora uma ideia (de jerico) que poderia servir até de tese para mestrado ou doutorado de algum ornitólogo. Segundo eles, o canto dos pássaros serve, entre outras coisas, para delimitar território. Muito bem! Não seria melhor delimitar área mostrando macheza, gritando impropérios, ameaçando o intruso ou ficar cantando musiquinhas, desfolhando a margarida ou balançando os balangandãs? Qualé, ô, Mane Zabé! Botar pra derreter, cara, porque senão a concorrência não respeita, não! Tem mais é que estufar o peito, botar o queixo para cima e deitar falação! E quem gritar mais alto, ganha a parada, bicho!
Outra coisa: Você aceita que o bichinho fica preso e canta? Está satisfeito? Feliz da vida? Que nada! Aquilo deve ser xingamento puro e de primeira qualidade! Nós que não entendemos achamos até bonitinho. Aposto: passarinho não canta; passarinho xinga. Quem viver, verá! 
Meu cunhado até comprou um livro para aprender como cortar as unhas do Ariel. Eu não sei onde ele encontrou essa ideia, mas – quem sabe? – Talvez as unhas grandes estivessem, de algum modo, atrapalhando o bicho cantar (huuuumm!). E num dia em que a menina não estava, segurou o bicho e pediu a esposa para cortar a unha. Foi uma tesourada só e ele estrebuchou. Infarto fulminante. Coisa triste. Quase o meu cunhado enfartou também. E agora? 
Saiu mais depressa e foi comprar outro para botar no lugar. Achou um igualzinho, colocou na mesma gaiola, no mesmo prego e esperou. Ambos se sentindo culpados por tanta coisa somente porque cortaram uma unhinha do passarinho.
Quando a Flavinha chegou foi direto para o Ariel. Olhou, olhou. Afastou-se um pouco. Cara de espanto.
Ariel está gozado! Parece mais amarelo! Esquisito!
Eles poderiam dizer que talvez fosse doença, hepatite, (isso, hepatite: fica amarelo!) quem sabe? Mas contaram meia verdade, acharam-se muito acuados e disseram que ele escapuliu, voou e esperaram pelo tranco, choro, desmaio, jogando todas as culpas para cima deles, aqueles troços todos. Que nada!
Ah! É! Então este vai se chamar Zé Trovão! Ele é tão espevitado!
 
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