ÁRVORES
Contos  |  Quarta-feira, 15 Maio, 2024 17:40  |  Visitantes e Leitores: 1798  |  A+ | a-
Dr. Dirceu Badini
Penso que a vida é feita de etapas, de eventos. Só para ilustrar, admitamos que ela será feita de cavacos, pedaços, cacos para uma obra que inicia quando se nasce. Imaginemos um vaso para botar flores, botar água ou para botar nada. Cada etapa seria como aquele pedacinho que nós ajuntávamos àquela obra. Nem todos seriam perfeitos, encaixariam direitinho, ficariam frestas, rebarbas, não alinhariam direito, e, às vezes mesmo, faltariam pedaços que não pudemos encontrar ou os colocamos com pressa, de qualquer maneira e desprenderam-se. Seguir em frente. Parar, não!
Fui criança, adolescente, adulto; fui filho, fui pai, esposo, irmão; fui companheiro, amigo e inimigo; fui aluno, professor, fui médico, fui gente com nome, sobrenome. Fui anônimo. E em todas essas etapas fui perfeito? Certamente não! Falhei em muitas, errei em tantas outras e fui imperfeito, talvez, na maioria delas ou em todas elas. Acho que até como inimigo eu não tive um papel de destaque. Não dá para corrigir; são aqueles cavacos, caquinhos daquele vaso que nunca será completo ou uma obra-prima, até o último dia.
Ao longo dessa caminhada do leste para oeste, já agora quase toda percorrida, eu me dispus fazer a contabilidade, os meus débitos de um lado e meus créditos do outro e cheguei a dura realidade de que estou devendo. Ganhei muito mais do que dei e não realizei nem a metade do que o meu potencial permitia e já agora próximo do meu ocaso, como reverter? Autocensura é muito dura, machuca, dói, dói muito. Chegar a conclusão de que você falhou e assumir as suas falhas pode ser até virtude para alguém, mas não me consola. Exijo e cobro muito, muito mesmo de mim, mas…. O tempo já passou.
Na verdade, muitas daquelas empreitadas não poderiam ser vencidas com o meu único esforço. Conclamei ajuda, associei-me a muitos outros que provavelmente tinham também falhas, eram também imperfeitos. Não tenho arrependimento de nada do que fiz, faria tudo de novo se fosse possível, somente faria maior e melhor e no final desta nova jornada, estaria satisfeito? Não! Não estaria, porque tenho ainda um outro defeito: teimar em ser um perfeccionista. Confesso e assumo que em muitas daquelas ocasiões eu deveria lançar-me célere e com tudo de mim até a montanha, mas ficava irresponsavelmente sentado ou indolente e preguiçosamente deitado em uma rede fictícia, num balanço vadio, aguardando a montanha chegar em mim.
Eu não queria ser lembrado por isso. Egoísmo meu, fraqueza do meu caráter, coisas do temperamento de muitos humanos, mais um dos meus deslizes. Eu não queria ser lembrado pelos meus fracassos, pelas minhas imperfeições, ou por aquilo que não fiz. Mas uma coisa tenho certeza de ter executado com toda a plenitude do meu potencial e estou seguro do mérito: eu plantei árvores, muitas árvores. Quando me lembro disso, meu ego explode em luzes e o meu espírito, num pileque memorável de alegria, se besunta todo de uma grandeza sem igual. A paz reina em mim. 
Eu quero ser lembrado porque plantei árvores! 
Quem poderá ser algoz daquele que plantou ou cuidou de árvores? Quem poderá ficar impassível diante de um enorme flamboaiã ou de um ipê sem uma folha sequer e cheio, cheiinho de flores? Ou de uma grande mangueira com seus frutos dependurados ou da casuarina sem graça gemendo aos açoites dos ventos da tempestade? Quem poderá ser insensível com a casinha do João-de-barro enganchada no galho mais maneiro da gigante ingazeira? Quem poderá ser ingrato com uma sombra amiga num dia de sol escaldante, depois de penosa caminhada?
Quem ficará impassível debaixo de uma árvore onde as flores caídas colorem o chão sob sua copa, flores mortas que continuam belas e, mesmo em decomposição, ainda exalam perfumes? Quem se cansará de ver uma frutífera carregada de frutos em sequência àquela farra luxuriante das flores que desabrocharam e se amaram para dar continuidade à perpetuação da sua espécie?
Eu quero ser lembrado porque plantei árvores! 
Quando chegar aquele momento de colocar o último caquinho velho, desbotado e bastante corroído pelos anos, ele vai se encaixar direitinho: nenhuma fresta, nenhuma fissura ou rebarba haverá porque neste instante, no último evento, todos aqueles hipotéticos vasos terão o mesmo acabamento, todos serão iguais. E quando eu chegar lá no grande portal – quem sabe?  – ELE virá ao meu encontro com um sorriso humilde, tímido; olhará os meus olhos, pegará no meu ombro e na florida alameda – existirão muitas – caminhará alguns passos ao meu lado, tempo suficiente para dar um ou dois suaves tapinhas nas minhas costas. Quem sabe?
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